APUROS DE UMA EX-EX-FUMANTE
Sobre os lábios um código de barras formado pelas pequenas rugas; pele flácida do rosto e olhos sem o brilho de antigamente; dentes amarelados e o cheiro (aquele cheiro de chaminé entupida!) e a possibilidade de realizar um implante dentário levou-me à decisão de: Vou parar de fumar!
Esta frase já havia sido repetida em vários Anos Novos, da boca pra fora, ao contrário da fumaça da boca pra dentro.
A motivação maior para parar, entretanto, foi o namorado, embora ele fosse um fumante.
Consulta à médica pneumologista, Raios X do pulmão. E, no consultório:
- Você tomou uma decisão inteligente. Seus pulmões não parecem afetados, AINDA! Disse-me a médica.
- Eu queria usar aqueles adesivos! Falei sem muita convicção.
- Nada disso. Tenho uma excelente sugestão para você. A médica respondeu.
- Trata-se de um novo tratamento. É um kit completo e você vai parar de fumar em quinze dias e sem qualquer sintoma de abstinência.
- Tudo bem!
A médica prescreveu o remédio, eu comprei e deixei na farmácia o equivalente a quatro salários mínimos da época!
Disse em casa que eu decidira ficar sem comprar roupas novas para compensar o gasto com o medicamento.
E o nome do medicamento? Deixa pra lá!
Fiz uma festa para os amigos. Distribui até convites impressos: “Despedida do Cigarro”.
Contei para a filha médica (incrédula como sempre) que me desejou boa sorte, mas fez um pequeno comentário para a irmã:
- ‘A médica deve ter ganhado a viagem para algum congresso patrocinado pelo laboratório, etc.
A filha caçula (crédula como sempre) disse-me que se eu voltasse a fumar, por ter jogado fora o equivalente a um guarda-roupa de verão, ela ficaria sem falar comigo nos próximos quarenta anos.
Consegui ficar sem fumar por seis meses. O namorado dava a maior força para eu continuar sem fumar e nos primeiros meses chegou a evitar fumar perto de mim.
Deixei de beber cerveja, que adoro, somente para não sentir vontade de fumar. O remédio realmente inibe os sintomas de abstinência, porém não evita o desejo louco de fumar.
No final de ano eu recebi um aviso prévio do namorado que arrumou emprego em outra cidade e decidiu acabar com o namoro.
A decepção foi tamanha que tão logo ele botou um pé na estrada eu botei um cigarro na boca e não parei mais de fumar.
Foi então que começaram os meus apuros de ex-ex-fumante.
Comecei filando cigarros dos outros, depois comprava a varejo e por fim comecei a comprar em maços. Passei a fumar uma marca chique, cara e forte para tentar fumar pouco, mas por ser chique e cara não encontrava a marca em qualquer lugar para comprar os cigarros.
Comecei a fumar escondido que nem um adolescente. Fumava um cigarro e corria para escovar os dentes. Trazia sempre no bolso ou na bolsa um monte de balas de hortelã, que eu detesto. Fumava um cigarro e chupava uma bala quando não podia escovar os dentes.
Procurei fumar escondida dos amigos por causa da festa de despedida do cigarro, mas não adiantou, eles perceberam pelo cheiro deixado no cabelo, na roupa e nas mãos. Então entre os amigos eu fumava. E fumava na rua evitando fumar dentro de casa e ser desmascarada.
Enquanto morei no apartamento amplo, com uma enorme varanda, eu podia fumar pelo menos a metade de um cigarro. Mas era detestável ter que deixar o quarto para fumar na varanda principalmente quando estava frio ou chovendo. E ainda pior ter que assistir a um filme alugado sem poder fumar um cigarrinho.
Passei a detestar alugar filmes.
Eu me mudei para um apartamento menor e sem varanda e sem chance de fumar escondida. O jeito era sempre arrumar uma desculpa para sair à rua, comprar pão na padaria ou frutas na mercearia ou carne no açougue e aproveitar para me abastecer de cigarros também.
O apartamento minúsculo possui dependência completa de empregada ou DCE. O tal DCE é um quartinho com uma privada e um chuveiro em cima da privada; não tem lavatório nem janelas. Felizmente não tenho empregada e eu jamais concordaria em enjaular um ser humano naquele buraco, mas o tal quartinho virou meu esconderijo para fumar. Por não ser diretamente ventilado - os seus basculantes são voltados para a uma área de serviço que é uma extensão da cozinha - a fumaça do cigarro fica lá concentrada. Assim eu fumava metade de um cigarro para fazer pouca fumaça e comprei aromatizadores de ambiente para ocultar o fedor. Mas o que fazer com as guimbas, as metades apagadas dos cigarros? Deixar no cesto e camuflar com os papéis usados não dava certo porque o cheiro do cigarro apagado fedia mais que a fumaça dele aceso.
Jogar dentro do vaso também não resolvia porque o diabo do cigarro apagado teimava em não descer junto com a descarga. Era preciso dar duas ou três descargas para vê-lo sumir. Muitas vezes era necessário adicionar um balde cheio de água para fazer sumir o troço e não deixar pistas. Achei que era um desperdício de água e mudei de estratégia. Passei a esconder as guimbas dentro de uma latinha de cerveja também escondida dentro de uma lata de lixo com gotas de desinfetante no fundo para atenuar o mau cheiro.
Estando sozinha em casa eu fumava na sala ou em frente ao computador e depois espalhava perfume pela casa toda antes de alguém retornar.
Mais desagradável do que fumar escondida é o medo de ser surpreendida com o cigarro na mão.
Creio que minha família já está sabedora que sou ex-ex-fumante e finge que não sabe. Eu não pretendo ser surpreendida por minha filha que prometeu não mais falar comigo por quarenta anos, pois não viverei até os cem anos, mas também não tenho intenção de deixar o cigarro. Já falei com meu analista que não tenho propósito de abandonar o cigarro.
Brevemente farei o implante dentário e o dentista já cansou de me explicar que o fumo agrava a doença periodental. O meu clinico geral antes aplaudira minha decisão de deixar o cigarro e depois reprovara o retorno ao vício e hoje ele não prescreve nem chiclete para eu deixar o cigarro. Diz ele (e está certíssimo) que não vai prescrever nada enquanto eu não estiver mesmo decidida a abandonar o cigarro.
Estou em apuros. Ou preciso de um namorado novo!
Alguém me empresta o fósforo?