Com a dramaturga atrás da orelha!

Sábado à tarde.Shopping center.Liquidação de sapatos femininos.

Os vendedores suados pareciam artistas de circo, equilibrando as caixas e mais caixas em meio às freguesas buliçosas:

-Aqui, senhora, vermelho 37.

-Quero um scarpin igual aquele da vitrine!- pedia outra.

-Ai, esta sandália é tudo!- gritavam duas adolescentes.

Foi neste clima que as duas antigas colegas de trabalho se encontraram, por acaso.

-Oi, quanto tempo!

-Oi, Catarina!

-Puxa, você ainda se lembra do meu nome! Você saiu da empresa, mas ainda está trabalhando com vendas?

-Não, não...descobri que não levo jeito!

-Hummm..entendo...É a sua filha?Como cresceu!

-Sim... Cumprimenta a moça, filha!

-Oi...

-E você tem um menino, não?

-Tenho sim.Foi pra casa do pai, hoje.

-Ah....

-E o que você está fazendo da vida?

-Dramaturgia! Começo dia vinte.

-Dramaturgia? Humm...entendo!

Trocaram mais duas ou três palavras e o celular da Catarina tocou.Su disfarçou, fingiu interesse num modelo da vitrine e saiu à francesa.A ex-colega de trabalho era uma fofoqueira e pensou que seria mais vantajoso perder uma promoção a prolongar aquela conversa.

E Catarina teve mais assunto ao telefone:

-Menina, nem te conto!

-O que foi, mulher?

-Lembra da Su, uma que trabalhou com a gente há uns dois anos?

-Sei, sei, o que tem ela?

-Acabou de sair daqui da loja!

-E daí?

-Vai fazer uma dramaturgia dia vinte!

-Nossa, não acredito!Tão jovem!

-Pra você ver!

-E é grave?

-Pela cara dela, acho que vai ter de tomar remédio para o resto da vida!Fiquei com a pulga atrás da orelha, porque ela evitou falar do assunto, saiu da loja de fininho...

-Caraca!Será que o que ela tem é contagioso, tipo gripe suína?

-Vira essa boca pra lá, menina! Esqueceu que ela estava aqui até agora há pouco?

-É mesmo!Mas ela não estava comprando sapato?

-Uma rasteirinha...vai ver que ela quer levar um sapatinho baixo pro hospital, pra quando tiver alta médica.

-Catarina do Céu!Acho que ela já estava doente desde daquela época!

-Ué, por que?

-Uma vez eu ouvi ela dizer ao rapaz do almoxerifado: “muita merda para você”

-Sério? E ele?

-Ele sorriu, fazer o quê?! Preferiu não contrariar a louca, não arrumar briga!Só porque o pobrezinho sonhava em ser ator!

-Devia já ser indício da doença, mesmo.Afetou os nervos!

-Pois é...devia!

-Mas mudando de assunto, o que voce vai fazer amanhã?

-Por enquanto, nada de bom!Por quê?

-Ganhei dois ingressos de um cliente para assistir a uma peça de teatro. Não gosto muito, mas não tive como recusar, meu cliente foi quem escreveu a história.É demagogo!Coisa de gente inteligente!E aí, vamos?

-Opa, claro! De vez em quando é bom fazer um programinha cultural!

-É sim...aproveitar enquanto temos saúde!Bem vou desligar, o vendedor já trouxe o sapato que eu pedi faz um século!

-Tá bom, beijo!

-Outro...Tchau.

(Maria Fernandes Shu- 10 de fevereiro de 2010)

Maria SHU
Enviado por Maria SHU em 10/02/2010
Reeditado em 10/02/2010
Código do texto: T2080219
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