Campeões

Sob vaias trovejantes, Edinaldo caminhava para a beira do gramado. Os três quartos rubro-negros de Maracanã lotado não perdoavam sua pífia atuação no decisivo Fla-Flu. Zero a zero e o Tricolor levava a taça. O Flamengo precisava do gol. Porém, aquela não era a noite do veterano centroavante. Uma, duas, oito chances perdidas... E a paciência da torcida se esgotara. No curto intervalo entre a placa de substituição subir com seu número e ele sair de campo, Edinaldo se lembrou de uma frase em latim que, certa vez, um estranho lhe dissera: Sic transit gloria mundi.

Foi numa tarde do inclemente inverno holandês, logo após o jovem Edinaldo se transferir para o Ajax. O promissor talento se deslumbrava com a descoberta de um novo mundo na Europa. Durante visita a um museu em Amsterdã, admirou-se com um dos incontáveis auto-retratos de Rembrandt. Contemplava o quadro quando ouviu uma voz pronunciar a frase.

Sem compreendê-la, Edinaldo virou-se e encarou um sexagenário. Poliglota, o senhor falava razoavelmente a língua portuguesa. Apresentou-se como um marchand perito na obra do pintor holandês. Contou-lhe um pouco da história de Rembrandt, seu apogeu e sua decadência. E arrematou, explicando que não importa o quão intenso é o sucesso, pois, para todos, assim passa a glória do mundo.

Edinaldo nunca imaginara que um dia aquelas palavras fariam tanto sentido. Os apupos cada vez mais fortes o acordaram do flashback. Já na lateral, tocou as mãos nas de Joãozinho e lhe desejou sorte. Cabisbaixo, sentou-se no banco de reservas. O cronômetro marcava 35 minutos do segundo tempo.

Trinta e cinco também era a idade de Edinaldo. Nascido numa favela carioca, desde cedo demonstrara habilidade com a bola. Transformou-se rapidamente na atração das peladas no campinho de terra, próximo à linha do trem. Sua fama corria o subúrbio. Não tardou para que um olheiro o levasse à Gávea. Ele só tinha 9 anos. Tratado como a jóia da coroa, ao alcançar a maioridade passou a treinar entre os profissionais. Seis meses depois, foi negociado. Com estabilidade financeira, poderia finalmente ajudar a família.

Entretanto, foi seu coração vermelho e preto que falou mais alto na última entrevista antes de embarcar para o exterior. Mandou um recado à torcida: anos poderiam se passar, mas ele encerraria a carreira no clube.

E assim cumpriu-se a promessa. Edinaldo saiu da Holanda para jogar no Barcelona. Brilhou ainda mais. Ganhou títulos, chegou à seleção, foi duas vezes campeão da Copa, outras tantas eleito melhor do mundo. Depois de 16 anos fora, só faltava a consagração no time que o revelou. Já enfastiado dos rigores do futebol europeu, retornou ao Brasil.

A torcida o recepcionou como uma das maiores contratações da história do clube. Dele se esperava que comandasse o claudicante time rubro-negro rumo ao título. No início do campeonato, até os adversários desanimaram ante a chegada do craque.

A sucessão de atuações irregulares arrefeceu o entusiasmo. Seus dribles desconcertantes de outrora se tornaram jogadas previsíveis. Edinaldo só fizera seis gols em toda a temporada, quatro de pênalti. Diante do cenário desolador, nem mesmo os flamenguistas acreditavam muito na conquista – apesar de o time ter chegado à final, aos trancos e barrancos.

O destino parecia inexorável. O relógio apontou 45 minutos. O árbitro olhou para o auxiliar e, com o indicador em riste, assinalou um minuto de acréscimo.

Com a derrocada do ídolo, a esperança atendia pelo nome de Joãozinho. O menino de 17 anos era habilidoso, como atestavam os comentaristas esportivos. Viera da Bahia, trazido por um ex-goleiro do Flamengo. Artilheiro do juvenil, havia tido duas ou três oportunidades na equipe profissional. Pouco para se firmar. A final servia de prova de fogo. O tipo de jogo que poderia catapultar ou enterrar a carreira de um iniciante.

Então, algo diferente ocorreu. Esquecido no banco e perdido em recordações, Edinaldo levantou os tristes olhos na direção do gramado. Os batimentos cardíacos se aceleraram quando Joãozinho pegou a bola na ponta direita, quase na bandeira de córner. Edinaldo levantou-se, com as pernas trêmulas. De jogador, passava a torcedor.

O lateral do Flu tentou tomar a bola do atacante, mas foi iludido pela ginga do moleque. Desesperado, um zagueiro tricolor veio em socorro. Acabou escorregando para além da linha de fundo, depois que o garoto lhe passou a pelota por debaixo das pernas. Àquela altura, o Maracanã assistia a um novo rei. Com incríveis rapidez e força, Joãozinho chutou, quase sem ângulo. Atônito, o goleiro nada pôde fazer. A bola estufou a parede superior da rede.

Como um sismo, a torcida multifacetada do Flamengo balançou as arquibancadas. Não fazia diferença a classe ou a origem: crentes e ateus; desdentados e remediados; negros e brancos; bandidos e gente de bem. Todos se abraçavam, amalgamados pela alegria. O grito entalado na garganta de dezenas de milhares agora ecoava pelo estádio: “É-cam-pe-ão!”.

O autor do gol nem ouviu o árbitro apitar o fim da partida. Correu em direção a Edinaldo. Com um antitético sorriso misturado a lágrimas, o veterano abraçou o novato. Joãozinho lhe falou:

— Este foi pra você. Sempre sonhei em jogar a seu lado. Você é minha maior inspiração no futebol.

A declaração soou como um bálsamo para Edinaldo. De algum modo, sabia estar cumprida sua missão nos campos. Deu os parabéns ao rapaz, que um dia seria um grande craque. Depois, pensou que se há verdade no caráter passageiro da glória, também é certo que ela sempre sorrirá para alguém. Nunca deixarão de surgir campeões, para os quais a posteridade guarda lugar especial.