O Robe Preto

Os Shoppings são lugares fascinantes, onde tudo se compra e onde tudo acontece. Por lá desfilam pessoas em busca de sonho e realidade, pessoas com dinheiro para simplesmente gastar, e outras sem ele, para simplesmente olhar.

Quando alguém se aborrece durante o dia, vai ao shopping à noite. Quando tudo correu bem durante o dia, vai ao shopping à noite.

Homens sentam-se às mesas dos bares do shopping para tomar cerveja e fechar negócios, ou abrir negócios, ou simplesmente ajudar nos negócios dos outros.

Mulheres andam pelos corredores, sobem ao piso superior, descem ao piso inferior, para procurar um marido, ou o marido que ainda não chegou em casa.

Kadine, naquela noite, estava lá por estar, nem aborrecida, nem alegre. Sua irmã a acompanhava e ambas tagarelavam sobre moda, um caso amoroso que apenas começara, a festa que estava para acontecer, quando Kadine parou, olhando a vitrine de roupas masculinas.

- Que homem lindo, Lu!!! É esse exatamente o que procuro.

- Quem Ka? Aquele vendedor? Não acredito...

- Imagine, saia das trevas. Esse aí do robe preto em cetim.

- Ah, sim! Entendi.

- Veja que elegância, Lu. O homem com quem eu venho sonhando esses anos todos.

O robe era em cetim preto no acabamento. O resto era em cetim estampado com delicados detalhes dourados. Uma das mangas longas balançava levemente, acenando para Kadine.

- Sinta o perfume dele, Lu. Não é divino? Ele acabou de tomar banho de imersão com sais... Ai, Lu. E passou uma colônia francesa.

- O que mais você sabe sobre ele?

- E fuma cachimbo. A banheira é de mármore.

- O que tem a ver cachimbo com mármore?

- Tem tudo a ver. Um homem que toma banho numa banheira de mármore, só pode fumar cachimbo, usar perfume francês, e o robe preto...

- O que esse Apolo come, Ka? Barras de ouro, polvilhadas com rubis e diamantes?

- Barras de chocolate suíço, polvilhadas com amêndoas picadas.

- Bebe prata derretida, com cubinhos de água marinha?

- Licor de Apricot, com cubinhos de... ora, pare de me gozar, Lu.

- Imagine, gozar! Eu já gosto do tipo mais esportivo: sem cachimbo, mármore ou licor. Aquele pijama ali ficaria ideal no meu Fernando.

- É mesmo, é a cara dele.

- Vamos agora, que já estão nos observando e faz tempo.

- Para onde? Ah, já sei. Vamos ver a pasta de couro para mim.

- Para combinar com ele?

- Claro, tudo tem que estar de acordo com ele.

Continuaram conversando e gargalhando em meio às pessoas que passavam. Enquanto olhavam outra vitrine exibindo outros tipos de robes, viram um mais sofisticado ao lado de um simples e comum.

- Olhe, Lu! Será que se a gente comprar um robe desses, vem um homem dentro dele como brinde?

- Vem, sim. Dentro desse vem um Olavo.

- E dentro daquele ali? - apontou para a peça simples, feiosa.

Luana respondeu:

- Ah, ah, ah, dentro desse vem o Zezão.

- É mesmo...

Riram até chorar. Haviam acabado de conversar com o Zezão, um rapaz fanhoso e simples.

- Coitado, Kadine, você não tem pena?

- Você que falou...

E riram ainda mais, até quase perderem o fôlego. É para isso que servem os shoppings. As pessoas lá se encontram e desencontram, falam mal e falam bem, riem porque choram, ou choram porque riem...

- Que tal um sorvete tipo italiano?

- Mas que tipo de italiano, Lu?

- Kadine, você não pensa em outra coisa. Já está traindo o Robe Preto?

- Imagine. Adoraria o sorvete sim. Mas vamos dar uma passadinha lá em frente de novo?

- Meu Deus, que paixão!!! E o Jê?

- Jê? O Jê entra naquele robe de algodão, vindo de promoção ainda ganho de algum parente...

Chegaram ao caixa:

- Duas casquinhas, por favor, pediu Lu.

- Que sabor?

- De Vanilla para mim, respondeu Kadine.

- Um Vanilla e um chocolate.

Saíram lambendo os sorvetes com prazer e pararam novamente diante da loja de roupas masculinas.

Ele estava lá, no mesmo lugar, altivo e orgulhoso. Kadine deslumbrava-se diante daquela figura masculina. Ela quase podia aspirar seu perfume, e na face sentir a maciez dos pêlos do tórax, imaginando-se com o rosto apoiado em seu peito magnífico.

Shoppings fazem dessas coisas, fazem enxergarem-se luzes coloridas, e é por isso que as pessoas vão aos shoppings.

- ... heim, Kadine?

- Oi, Lu. Por que me importuna com essa sua vozinha impertinente? Você sabe o que eu estava fazendo?

- Bem, resposta à primeira questão: porque não tenho outra. Resposta à segunda questão: você estava olhando não sei o quê. Os olhos brilhavam e o rosto corava.

- Pois é, sua atrevida. Eu decolei e flanava, Lu.

- Você está sempre flanando...

- Sempre que um anjo me leva em suas asas...

- Nossa!!! Essa foi demais...

- Demais nada. Acabo de levar um belo tombo das asas do anjo. Você o alvejou com sua voz irritante.

- Tá bom. Eu te ajudo a subir de novo...

- Agora não quero mais. Vamos andando.

- Vamos embora, que eu já me cansei.

Caminharam para a saída, ondulantes e alegres.

Sentiram o ar quente da noite estrelada da cidade acolhedora, apesar de grande. Passaram pelo estacionamento, descendo depois a rampa que saía na Avenida Faria Lima, fervilhando de faróis.

Levavam consigo o “espírito do Shopping”. Suas luzes brilhavam dentro delas e seu perfume agradava suas narinas.

- Lindo aquele relógio de pulseira dourada, não é, Lu?

- Eu gostei mais daquele outro.

- É, na verdade, gostei dos dois. Hum, aquele perfume francês, o Fantasme, não é divino?

- Acho que todos os fantasmas são divinos.

- Não acho, não. Imagine o fantasma de dona Aparecida, seria divino?

- Não, seria “diabino”.

- Por falar em diabino, e a namorada do seu digníssimo marido?

- Diabina também.

Atravessavam mecanicamente as ruas, viravam esquinas, um tropeção aqui, um outro lá.

- Oh, Lu, como estou carente! Gostaria de receber esse homem embrulhado para presente, no dia de Natal.

- Pois então peça ao Papai Noel, mas só para o ano que vem. O deste ano já foi.

- E quantas vezes já não pedi!? Mas só me aparecem tranqueiras, e eu odeio esses mocinhos com o rosto que não é de homem, nem de menino. É verdadeira cara de bunda.

- Nossa! Coitados dos mocinhos, Kadine. Como você é má!!!

- Eu sou má, mas você adora minha malda...a.....aiiiiiii.

Havia metido o pé num buraco do asfalto, torcendo-o, caindo de joelhos.

- Aiiiii, meu joelho. Olhe você, Lu. Devo estar com a rótula exposta.

- Nossa, está sangrando, sim. Mas sem exageros, não é? Vamos que lá em casa eu coloco remédio.

- Arde.

- Arde e cura.

- Ai, a saia ergueu para eu ser atingida na carne.

- Que drama, Ka! Não é como ser criança e ralar o joelho?

- Claro, é como ser criança. Se cada ralada no joelho tirasse de nossa cara um ano, juro que viveria caindo.

- Está doendo muito?

- Olhe, dói, viu? Arde prá diabo.

E Kadine gritou como criança mesmo, quando a irmã esborrifou o mertiolato sobre o ferimento.

- Como eu vou para casa agora andando? Maldita a hora em que eu quis vir a pé. Droga!

- Você quer que o meu digníssimo a leve de carro?

- Imagine... Prefiro ir sofrendo, sozinha na madrugada fria.

- Fria, Kadine? Com uma temperatura de trinta graus?

- É mesmo. Esqueci-me que estamos no verão desta “caliente” Rio Preto.

Riram.

Uma semana depois, um cascão feio enfeitava o joelho esquerdo de Kadine. Ela voltara para Campinas, após as férias do final do ano.

E era mesmo só o que Kadine queria naquele momento: meter-se debaixo da manta de pele, envolvendo a cabeça, o corpo todo, escondendo-se do mundo.

Lecionara o dia todo. Andara de circular. Não se conformava em estar andando de ônibus, quando em sua cidade tinha seu próprio carro, telefone ao lado da cama e outras comodidades mais.

Aquele havia sido mais um dia difícil, infrutífero sob seu ponto de vista, quando não pudera fazer nada do que mais gostava, como ler, escrever ou pintar.

“Quisera eu ter asas, grande par de asas, brancas, para voar para a vida, para voar para a morte.”

Adormeceu por meia hora. Despertou um pouco assustada, olhando para o despertador. Nove horas da noite.

“Vou ao shopping. Hoje eu preciso mesmo ir ao shopping”.

Espreguiçou-se com lentidão, começou a colocar uma das pernas para fora da manta, sentiu frio e voltou a encolher-se sem ânimo.

“Mais cinco minutos, só”.

Mais dez minutos de preguiça transcorreram até Kadine pôr-se para fora da cama, espreguiçando-se e bocejando.

“Agora eu vou”.

Foi até a janela, podendo perceber que fora a noite tinha uma temperatura agradável.

Nem trocou sua calça “fuseau” e a túnica com que estivera o dia todo. Desceu, e foi para o ponto do ônibus a um quarteirão do prédio.

Mais dez minutos e estava chegando ao shopping às nove horas e vinte minutos.

E foi rápido como um raio o que viu.

O próprio Robe Preto sem ele, empurrando um carrinho de compras, com um cachimbo na boca, dirigindo-se para o Hipermercado.

Este a olhou fixamente, como a querer parar. Kadine chegou mesmo a parar sob o ímpeto de correr atrás dele, de interromper seus passos. Estava diante de um milagre. Sim, ele existia mesmo.

E o homem não sabia se voltava ou se continuava. Continuou. Entrou no Hipermercado.

Kadine, percebendo sua insensatez, tomou o caminho oposto. Entrou no shopping. Iluminou seus olhos e sua alma com os produtos importados, as velas coloridas e perfumadas, o estojo infantil com o qual imaginava presentear a sua sobrinha, as canetas coloridas para o sobrinho.

Lembrava-se das noites quentes no shopping de sua cidade no maravilhoso verão. Saiu daquela loja sem nada comprar. Era sempre assim: namorava por um tempo os objetos de que gostava, vindo a comprá-los posteriormente. Dobrou à esquerda, na Joalheria. Viu algumas bijuterias em outra loja, pensando na mãe e na irmã, e um belo estojo de barbear para o pai.

A loja de perfumes importados não podia ser deixada de lado.

- O Paloma Picasso, quanto está?

- R$ 56,00

- O Laguna, de Salvador Dali?

- R$ 45,00.

- O Regine’s?

- Não temos.

- Ah, e aquele? É lançamento?

- É sim, de Rochas.

- Ah, está bem, obrigada.

Saiu da loja e lembrou-se de olhar para o pulso.

“Pôxa, dez para as dez!”

Correu para comprar um incenso “Gold Statue” e um tablete de chocolate meio amargo. Ainda deu tempo de pegar uma casquinha de sorvete italiano sabor Vanilla.

Quando subia no Circular, voltando para o pensionato, a casca da ferida do joelho repuxou, doendo um pouco, o que a fez lembrar-se do Robe Preto.

Deu uma olhada em volta, pela janela do veículo. Muitas pessoas circulando, cruzando seus caminhos, indo e vindo, alegres e tristes, carregadas de pacotes ou mãos vazias.

Ele não cruzava caminho com ninguém, nem nesta noite, muito menos em outra qualquer. Nem em Campinas, nem em Rio Preto.

A casca do joelho de Kadine soltou-se, deixando debaixo dela uma pele meio brilhante e lisa, como o contorno de um mapa.

Não apenas uma marca insignificante, mas a marca de uma forte lembrança: um Robe Preto.