A MORTE DE DAGOBERTO

     
Que Dagoberto era um bom homem, honesto e cumpridor dos seus deveres, todo mundo sabia; o que não se esperava era que no dia do seu velório comparecesse tanta gente; na maioria colegas da montadora de automóveis em que trabalhava há oito anos. Os familiares, pouquíssimos, eram representados por Tânia, a viúva; Dona Zélia, a sogra; Inês, a cunhada; e Elias, o concunhado.
     A causa da morte? Bem, a causa da morte era o motivo de cochichos maliciosos que se disseminavam por todo prédio, em cujas dependências ocorria o velório. A dúvida que pairava era: teria sido acidente? Ou suicídio? Contra a primeira hipótese conspira o fato de ele ter sido excelente operador da máquina em que trabalhava; a favor da segunda, o fato de ter sido acometido recentemente de uma severa crise depressiva. O certo é que ninguém sabia realmente a verdade, e, quando alguém perguntava de que ele havia morrido, a resposta era uma só: “foi vítima de acidente na máquina em que operava”.
     Dagoberto Ferreira dos Santos chegara a São Paulo havia nove anos, vindo de Caicó, no Rio Grande do Norte. Não demorou a conseguir um emprego. Depois, visando a um melhor salário, conseguiu, por intermédio de um amigo, um lugar para trabalhar na empresa atual. Era um sujeito introvertido, não que fosse insociável. Todos o admiravam pelo espírito de coleguismo e capacidade profissional. Diversas vezes foi elogiado por seus superiores hierárquicos, chegando a ganhar um prêmio num final de ano e ser lembrado para concorrer ao prêmio “Operário Padrão”. O comparecimento maciço dos colegas, mesmo faltando ao expediente - já que a Montadora não pode parar -, era uma prova de lealdade e reconhecimento dos seus méritos.
     A viúva, Tânia, abalada pelo inesperado acontecimento, estava ao lado do caixão, recebendo as condolências. Relembrava todos os bons momentos que passaram juntos durante aqueles seis anos de casados. O seu pensamento, quando voltava à triste situação, fazia um questionamento: ora, se não foi acidente, por que Dagoberto teria cometido o suicídio? A crise depressiva ele já tinha superado. Financeiramente o que ganhava dava para pagar as contas do mês. É verdade que não sobrava quase nada. Mas a mente humana é mesmo uma caixa de surpresa e tudo pode ter acontecido. Ele numa certa ocasião chegou até a esconder a própria doença, como foi o caso da apendicite aguda que teve que operar às pressas e depois disse que “pensou que fosse besteira”. Dos olhos dela rolavam lágrimas que escorriam pela face rosada e eram interceptadas pelo lenço úmido de Dona Zélia, que inutilmente tentava consolar a filha.
     O velório transcorria como outro qualquer, exceto pela presença daquele estranho homem que chegou, deu uma rápida olhada no falecido - este indiferente a tudo permanecia lívido no seu caixão - e em seguida passou a fitar implacavelmente Tânia, sem pestanejar.
     Dona Zélia incessantemente tentava consolar a filha e repetia baixinho:
     - Deus o levou porque sabia que ele era um homem bom.
     - Eu sei mamãe, mas por que escolheu logo Dagô? - era assim que o chamava carinhosamente.
     - Minha filha, você precisa sair um pouco... Vamos até a sala ao lado tomar um cafezinho?
     Apesar de relutar um pouco, ela deixou-se levar pela insistência materna. Caminhou lentamente com seus passos curtos, amparada pela mãe, e conseguiu chegar até a saleta ao lado. Tentava tomar meia xícara de café, quando inesperadamente adentra à saleta aquele homem que tanto a observara. Ele estendeu a mão e fingindo compaixão diz:
     - Minha senhora, receba meus pêsames!- antes que ela dissesse qualquer coisa, ele prosseguiu - Meu nome é Nestor. Eu era muito amigo do seu marido e vinha há meses lhe emprestando dinheiro. E é claro que a Senhora vai cumprir com os compromissos assumidos por ele!
     Tânia, surpresa com aquelas afirmações, sentiu-se ainda mais abalada. Dagoberto havia contraído um débito e não lhe comunicara. Em que empreendimento teria usado o dinheiro? Era como estivesse sendo atingida por um terremoto. Dona Zélia percebendo tamanha aflição, ainda teve forças para perguntar:
     - Quanto é a dívida?
     - Bem, durante os últimos oito meses ele vinha fazendo um empréstimo mensal de um salário mínimo. No final do mês pagava somente os juros e pegava novamente outro empréstimo no mesmo valor.
     - O Senhor não acha o momento inoportuno para fazer uma cobrança? - Perguntou Dona Zélia, irritada.
     - Desculpem-me, eu não estou aqui para fazer cobrança. Vim só para me despedir do meu amigo Dagoberto.
     Nestor retirou-se imediatamente. Ninguém mais o viu naquele ambiente.
     Aquele acontecimento chocante foi um grande golpe numa ferida recém-aberta, aumentando-a em dimensão e profundidade. O choro de Tânia, agora mais profuso, advindo do sentimento de perda, misturava-se de forma brusca com o surgimento da inevitável e dolorosa dúvida de traição. A sensibilidade humana é assim mesmo, nos momentos de fragilidade pode através da introspecção introduzir novos conceitos e diferentes valores às coisas ou às pessoas. Dona Zélia, agora mais rancorosa do que saudosa, instigava as suspeitas da filha:
     - Tai toda a verdade. Enquanto você trabalhava como uma maluca em sua casa, seu maridinho se fazia de bonzinho e sustentava outra mulher, dando um salário a ela todo mês. E para completar, ainda deixou a conta pra você pagar! Só pode ter sido isso a causa da morte dele: a amante o deixou por outro! Acidente? Que acidente que nada...
     - Não é verdade, mamãe! Eu não acredito!
     - Desculpe, minha filha, eu falei sem pensar - tentava a mãe atenuar a situação.
     Mãe e filha retornaram ao salão do velório. Tânia cabisbaixa, agora chorava com menor intensidade. Às vezes elevava um pouco a cabeça, contemplava Dagoberto e pensava: “Dagoberto dos Santos, como pode você ter conseguido me enganar por tanto tempo? Traidor!”. Havia agora em sua mente uma estranha sensação. Uma negra nuvem de revolta ofuscava o brilho exemplar do falecido marido, deixando-a entorpecida. Recebia as condolências quase que mecanicamente, porque o seu pensamento estava distante à procura de uma explicação para tudo aquilo. Dominava-a um ardente desejo de saber toda a verdade sobre a possível traição.
     No cemitério manteve-se calma, apenas esboçando algumas discretas e últimas lágrimas de despedida. Uma sensação de vingança por alguns instantes tentou dominá-la, entretanto, não chegou a ser plena e em poucos instantes desintegrou-se por completo.
     Quinze dias depois daquele lúgubre dia, encontrava-se Tânia sentada na poltrona de sua casa, contemplando a fotografia de casamento exposta num porta-retratos. Dona Zélia ao seu lado tentava conformá-la:
     - Você fez muito bem em não mandar celebrar a missa de sétimo dia. Nem isso Dagoberto merecia. Tai o que ele fez: deixou você desamparada, com uma pequena pensão que não dá nem para comer!
     - Eu sei, mamãe... Mas, afinal, foram seis anos de casamento.
     - Seis anos de traição! Isso sim! Temos que dar graças a Deus por você não ter tido filhos, porque teria sido muito pior.
     A campainha tocou. Mãe e filha entreolharam-se em silêncio. Tânia levantou-se e caminhou até a porta, pensando tratar-se de algum cobrador. Ao abri-la deparou-se com um rapaz de terno e gravata, conduzindo uma pasta na mão e um envelope na outra.
     - Eu gostaria de falar com a senhora Tânia Cavalcante dos Santos - disse ele com os olhos fixos no envelope.
     - Sou eu mesma - respondeu Tânia, temerosa.
     - Meu nome é Teixeira, sou agente da Companhia de Seguros.
     - Companhia de Seguros?
     - Sim - respondeu Teixeira, - sou da companhia de seguros que o Senhor Dagoberto pagava antes de morrer. Eu venho aqui pra dizer que a senhora tem que comparecer aos nossos escritórios o mais rápido possível, com os seus documentos e a certidão de óbito do falecido, para receber o seguro.
     Tânia, estarrecida com o que ouvira, olhou para a mãe e, ao retornar o olhar para o rapaz, perguntou:
     - Quanto era a mensalidade que ele pagava?
     - Aproximadamente um salário mínimo. O prêmio por morte acidental é de R$ 50.000,00 - respondeu Teixeira.
     O agente de seguros despediu-se e partiu. Os olhos de Dona Zélia brilhavam de alegria. Tânia mantinha-se na poltrona, estática e confusa. Uma torrente de remorso de uma forma inesperada veio atingi-la completamente. A voz sumiu-lhe por alguns instantes; quando se fez presente veio acompanhada por uma enxurrada de lágrimas, banhando a sua face.
     - Meu Jesus Cristo, como eu fui tão estúpida e ingrata com Dagô - disse ela com grande esforço.
     - Você não teve culpa, minha filha. Deus há de perdoar. Vamos providenciar os documentos para a seguradora e depois a missa de trinta dias de Dagoberto, porque ele merece.
     A fidelidade absoluta de Dagoberto fora comprovada. Tânia agora tinha a certeza do quanto ele a amava e o quanto se preocupava com o seu bem-estar; de uma coisa somente ela não tinha certeza: teria sido acidente ou suicídio a causa da morte?