O FUSQUINHA AMARELO

     
Rua deserta. O fusquinha amarelo, ao lado do chevette branco, usufruía, naquele início de noite, da tranqüilidade tão pouco comum naquela rua. O silêncio era quebrado em intervalos mais ou menos regulares por um grito em coro vindo do interior da casa: “gool”. Depois o sossego voltava a reinar.
     Lá dentro todos vestiam camisas amarelas. Bandeiras verde-amarelas ornamentavam a sala, dispostas em cordões entrecruzados. Uma grande bandeira do Brasil na parede complementava a decoração. O televisor mostrava a partida de futebol entre Brasil e Itália. Era a final da copa do mundo de 1994. Roberto Baggio preparava-se para cobrar o pênalti decisivo. Mãos nervosas esfregam-se. Sentado na poltrona, olhos vidrados na tela, Jorge acomoda o copo de cerveja na mesinha repleta de garrafas vazias; Eduardo, de um só gole toma o seu copo de cerveja. Enquanto Vera fazia figa, Rejane cobria os olhos com as mãos. Baggio cobra o último pênalti para a Itália e perde. Todos explodem de alegria, pulam e gritam: “Brasil, tetracampeão do mundo!”.
     Jorge, o anfitrião, desliga o televisor e liga o som. Coloca um disco com músicas da seleção brasileira. Depois de mais de uma hora de inevitáveis comentários, Jorge vira-se para Eduardo, seu colega de trabalho no banco, e diz:
     - Viu, Dudu? O baixinho é foda! Se não fosse ele o Brasil não tinha sido campeão.
     - Que nada. Cadê que ele fez gol na partida final! Nós temos que agradecer é a Baggio por ter perdido o pênalti. Tivemos muita sorte - disse Eduardo.
     - Você é de lascar: nunca vai aceitar que Romário foi o salvador da pátria.
     - Jorge, deixe de conversar besteira e vá pegar a saideira.
     Rejane aproxima-se de Eduardo, enquanto Jorge levanta-se para pegar a cerveja.
     - Já é tarde, vamos para casa Eduardo.
     - Só mais um pouquinho. Vamos tomar a saideira.
     - Está cedo Rejane - diz Vera, com pouco entusiasmo.
     - É, meu bem, está cedo - reforça Eduardo.
     - Cedo que nada. Essa conversa de saideira já ouvi mais de mil vezes - protesta Rejane.
     - Dudu, vamos ao bar comprar a saideira, não tem mais nenhuma no freezer - diz Jorge, retornando triste da cozinha.
     - Me digam uma coisa: por que vocês nunca ficam satisfeitos com bebida e têm sempre que tomar mais uma? - pergunta Rejane, irritada.
     -Mas hoje é um dia especial. Afinal, copa do mundo é de quatro em quatro anos - diz Jorge enquanto pega quatro garrafas da mesinha de centro.
     - É...Vocês têm mesmo que acabar com toda bebida do mundo - ironiza Vera.
     - Eu juro que vou tomar só a saideira. Vamos lá compadre - diz      Eduardo, levantando-se da poltrona.
     - É... Quando for mais tarde, parece que estou vendo: você vai vomitar até as tripas. E tomara que não faça como naquele dia em que abriu a porta do guarda-roupa e vomitou dentro - diz Rejane em tom ameaçador, dedo em riste.
     Vera sorriu. Olhando para Jorge, revelou:
     - Pior foi Jorge, um dia tomou um porre tão grande que mijou na roupa.
     - Vamos, Dudu, estão começando a exagerar - defende-se Jorge.
     Eduardo pega as chaves do seu carro. Jorge, segurando quatro garrafas vazias de cervejas, traz na mão, também, a chave do seu fusquinha amarelo. Entram no chevette de Eduardo e partem. Estacionam o carro. Jorge desce e entra no bar; Eduardo retira as garrafas de dentro do carro, coloca-as no chão, fecha a porta, coloca as chaves no bolso da bermuda e também se dirige ao interior do bar. Compram as cervejas, que são conduzidas por Eduardo. Jorge sai na frente com as chaves do fusquinha balançando nas mãos. Ao chegar a porta, pára repentinamente. Faz uma rápida inspeção olhando para os dois lados da rua. Eduardo, percebendo a fisionomia tensa do amigo, pergunta:
     - O que foi, Jorge?
     - Puta que pariu...Cadê o meu fusquinha amarelo? - Diz Jorge, gaguejando.
     - Rapaz...Como é que pode? Em dois minutos que entramos no bar, carregaram o seu carro - confirma Eduardo.
     - Porra...É foda. E agora? O que é que vou fazer sem o meu fusquinha?
     - Calma, compadre, ele aparece - Eduardo tenta consolar o amigo.
     Jorge começa a chorar. Eduardo, depois de pôr as cervejas no chão, coloca as mãos sobre os seus ombros, solidário com a presumível perda. Escorados num carro ao lado do chevette dele, Eduardo percebe um carro da polícia estacionado numa esquina próxima.
     - Olha lá, Jorge!
     Depois de enxugar as lágrimas, Jorge levantou a cabeça e deixou transparecer que nem tudo estava perdido. Deixaram as cervejas no bar. Caminharam até o carro da polícia. Dentro havia dois policiais: um sentado ao volante, mascando chiclete, e o outro, musculoso, com um pequeno rádio colado ao ouvido. Jorge, desesperado, quase gritando, suplicou:
     - Pelo amor de Deus, me ajudem. Nós paramos ali no bar para comprar umas cervejas e carregaram o meu fusquinha.
     - Nós podemos dar uma busca aqui por perto, mas você tem que prestar queixa na delegacia. Qual é mesmo o carro e o número da placa?      - interrogou o policial do volante, enquanto o outro não desgrudava o rádio do ouvido.
     - É um fusquinha amarelo. A placa é MM 4265. Se vocês encontrarem podem meter o pau nos ladrões que eu dou uma recompensa.
- Pode deixar com a gente - diz o outro policial descolando o rádio do ouvido.

     Os dois amigos chegam à delegacia, de táxi. São conduzidos à presença do delegado. Permanecem alguns minutos em pé, enquanto o delegado assiste à reprise dos gols num televisor sobre o birô, que competia por espaço com uma velha máquina de datilografia e grande quantidade de papéis espalhados. O delegado faz sinal para sentarem. Baixa o som do televisor e pergunta:
     - Por que andaram brigando?
     - Não foi nada de briga, Seu Delegado. Roubaram o meu fusquinha amarelo. Trabalhei tanto, fiz tantas horas extras. E agora o que vou fazer sem ele? Era tão bom, me servia tanto... - diz Jorge, deixando cair algumas lágrimas.
     - Era tão maneiro, tão bom de se empurrar - complementa Eduardo.
     - Calma. Vamos tomar todos os dados. Não se desesperem, ele pode aparecer - diz o delegado.

     Em casa, as duas mulheres aguardam ansiosas os maridos. Rejane, sentada na poltrona, pensativa, tenta controlar-se; Vera, espreitando pela janela, desabafa:
     - Meu Deus, que demora é essa? Já dava tempo demais deles terem comprado a porcaria dessa cerveja!
     - Eu sei o que aconteceu: eles encontraram algum amigo e estão lá enchendo a cara enquanto nós ficamos aqui como duas bestas - diz Rejane.
     - E se tiver acontecido algum acidente com eles?
     - Que acidente que nada...
     - Acho melhor irmos à procura deles - diz Vera, interrompendo Rejane.
     - Mas em que carro? Jorge levou a chave de fusquinha - observa Rejane.
     - Eu tenho uma cópia da chave guardada - tranqüiliza Vera.
     Os dois policiais encontravam-se ainda na esquina, haviam descido do carro e dialogavam. O mais musculoso dizia para o do volante:
     - Pois é, mulher comigo agora é no cacete. A minha disse que se eu deixasse Dolores ela me aceitaria de volta. Agora quer botar banca!
     - Mulher é assim mesmo, a gente faz tudo por ela e depois toma no rabo - complementa o outro policial.
     Ao virar-se o policial vê surgir o fusquinha amarelo. Faz sinal para ele parar e diz para o companheiro:
     - Olha só quem vem aí! Parece que é o carro daqueles caras. Vamos conferir a placa.
     Conferem a placa e mandam que desçam. Rejane é a primeira a descer; Vera desce irritada e pergunta:
     - Que brincadeira é essa?
     - Cale a boca, vocês estão presas.
     - Presas? Era só o que faltava - diz Rejane surpresa.
     - Sim. Vocês roubaram esse carro.
     Vera não conseguindo controlar o seu nervosismo, entra no carro e faz sinal para que Rejane faça o mesmo. O policial musculoso a pega pelo braço imobilizando-a. O outro policial solicita reforço policial pelo rádio, que não tarda a chegar. Por mais que elas tentem explicar, são conduzidas para a delegacia, num camburão. O fusquinha, guiado por um soldado, também segue o cortejo.
     Na delegacia, Jorge, com um olhar triste, e Eduardo observam o escrivão preencher o registro da queixa. O delegado levanta-se e em voz alta diz:
     - Pronto. A queixa foi registrada. Podem ir, e não se preocupem.
     Eduardo levanta-se, enquanto Jorge permanece sentado e suplica ao delegado:
     - Seu delegado, por tudo que há de sagrado, eu peço ao senhor para procurar o meu carro porque... - as palavras de Jorge são interrompidas pelo som estridente do telefone.
     - Alô! Quem é? Sim...Sei... - o delegado faz sinal de positivo com o polegar - Tudo bem pode mandar entrar.
     - Vocês não sabem o que aconteceu: uma guarnição da policia encontrou o fusquinha amarelo. Estava sendo roubado por duas perigosas mulheres que estão presas aí fora.
     - Eu não quero nem saber, pode mandar meter o pau nessas safadas. Viva o meu fusquinha! Viva a seleção! Viva o delegado! - gritou Jorge pulando da cadeira e abraçando Eduardo.
     A euforia de Jorge chega ao fim quando entra na sala dois policiais conduzindo Vera e Rejane algemadas. O espanto é recíproco.
     - O que vocês estão fazendo aqui? - pergunta Jorge, surpreso.
     - Vocês tomam seus porres e nós somos presas acusadas de roubar      o meu próprio carro! - desabafa Vera enquanto são retiradas as suas algemas.
     - Não estou entendendo nada. Nós não saímos no fusquinha? - pergunta Eduardo.
     - Vocês saíram no chevette - diz Rejane chorando.
     Eduardo leva a mão ao bolso da bermuda e percebe a chave do chevette. Olha para Jorge e confirma:
     - Realmente, compadre, foi um engano nosso.
     - Estão vendo só o que dá essa história de saideira - diz Vera trincando os dentes.
     - Pelo que estou vendo, foi um pequeno mal entendido - tenta amenizar a situação o delegado.
     - Mal entendido que nada. Nós fomos presas e maltratadas por esses dois trogloditas - desabafa Rejane.
     - Isso aí também faz parte do mal entendido! - Sentencia o delegado.
     Os dois casais deixam a delegacia no fusquinha. Vera, ao volante, discute ferozmente com Jorge, que se encontra ao seu lado. No banco traseiro, a briga é entre Rejane e Eduardo.
     O fusquinha amarelo, indiferente a tudo e ignorando que, em parte, tenha sido o causador da contenda, segue firme pela madrugada, sem pressa, pelas ruas iluminadas e desertas de uma cidade que adormecera embalada pela euforia da conquista de um tetracampeonato.