A SOFRIDA VIAGEM DE TREM

     O
trem parou na estação. Passageiros sobem; passageiros descem. Uma mulher obesa - talvez com uns cento e vinte quilos - procura um lugar para sentar-se. Confesso francamente que fiquei temeroso em a tê-la como companheira de viagem - temor à primeira vista. Como não era o meu dia de sorte, não deu outra coisa: ela veio, olhou para um e para outro lugar, e sentou-se ao meu lado. E, vejam bem, o banco em frente estava vazio.
     Espremi-me todo. Mal podia respirar; tinha que coordenar a respiração: toda vez que ela expirava, eu tinha que inspirar. Mantinha as minhas pernas juntas; ela abriu-as folgadamente. Comecei a suar. Detesto viajar de costas, entretanto, numa situação daquela não havia outra opção: tinha que me sentar no banco em frente. Procurei ser discreto: levantei-me, pedi licença e caminhei até o vagão vizinho. Depois retornei para ocupar, com alívio, o lugar escolhido. A tarefa foi muito fácil, porque ela já havia ocupado totalmente o banco, sentando-se no meio e colocando umas bolsas ao lado.
     A viagem prosseguia. Eu preferia olhar pela janela o verde da paisagem que ficava para trás a ver a passageira em frente, que se deliciava chupando uma manga. Lambuzou-se toda. Para piorar mais ainda a situação, tentava limpar as mãos sujas na roupa e na gola do vestido. Tirei do bolso um cigarro e o acendi. Ela olhou-me com espanto e disse:
     - Detesto cigarro. Dá para apagar?
     - Sim, Senhora – respondi, apagando o cigarro.
     A locomotiva, uma “maria-fumaça” que talvez fizesse a sua viagem de despedida, nos brindava com uma nuvem de fumaça fora do comum. Não era um fato perturbador; pelo contrário, provocava uma nostálgica sensação. A companheira de viagem não pensava assim e, olhando para mim, disse:
     - Mas que fumaça chata!
     - É... – concordei.
     - Moço, vamos trocar de lugar? – perguntou-me, levantando-se.
     - Tudo bem – concordei.
     Lugares trocados. Ela deixara as bolsas e uma garrafa d’água ocupando mais da metade do banco. Sentei-me do lado da janela. Ela inesperadamente colocou os pés sobre o banco, entre mim e as bolsas, diminuindo mais ainda o meu espaço. Sempre que o trem balançava um pouco, os pés dela roçavam em minhas coxas. Quando estava disposto a reclamar, ela disse-me:
     - Não gosto de viajar de costas. Sempre me dá tonturas. Vamos destrocar os lugares!
     O que eu podia fazer a essa altura? Não era um pedido, era uma ordem. Contrariado, concedi.
     Depois de alguns minutos, ela abriu uma bolsa e retirou um copo. Encheu-o d’água, molhando a minha roupa, com o balanço do trem. Considerei o acontecimento como um pequeno incidente, isentando-a de culpa. Ela, no entanto, reclamava:
     - Essa porcaria de trem não pára de balançar!
     Abri o jornal. Enquanto lia, a página do jornal que havia ficado virada para a companheira de viagem exibia uma reportagem cuja fotografia mostrava a vítima de um assassinato. A mulher protestou:
     - Moço, vire esse jornal para lá. Não gosto de ver gente morta!
     Dobrei o jornal, escondendo a foto, e prossegui a leitura. Ela novamente me interrompeu:
     - Esse jornal é de quando?
     - É de ontem, senhora.
     - Pode emprestar-me?
     Entreguei-lhe o jornal. Ela olhou ligeiramente as páginas e devolveu-me, dizendo:
     - Nessa porcaria não tem nada que me interessa!
     Com o jornal de volta, procurei retornar à leitura. Já não conseguia mais me concentrar; desviava a todo instante o olhar para a indesejável companheira de viagem. Ela mais uma vez interrompeu-me. Não a leitura dessa vez, mas o julgamento que fazia dela, condenando-a a alguns anos de silêncio nas masmorras de Taciturnópolis.
     - Moço, por favor, vou tirar um cochilo, porque passei a noite acordada com medo de perder o trem. Quando chegar perto da estação de Patu, acorde-me.
     - Pode dormir sossegada, que a acordarei – disse aliviado.
     Não demorou muito e adormeceu. Dormiu um sono profundo; roncava muito. Jamais imaginei que um dia me sentiria tão feliz com alguém roncando ao meu lado. Respirei aliviado e retornei à minha leitura.
     Quando se aproximava a estação de Patu, resolvi acordá-la.
     - Senhora...Senhora...
     Ela dormia profundamente. Segurei no seu braço e tentei chamá-la mais uma vez:
     - Senhora...Senhora, estamos chegando em Patu.
     Nenhum sinal de que ela acordaria. Mexia-se um pouco e se virava para o lado. Eu insistia:
     - Senhora, o trem está chegando.
     E o trem chegou e parou na estação. Eu agora gritava alto:
     - O trem chegou!
     Até que enfim ela abriu os olhos e disse:
     - Não precisa gritar!
     - É que o trem já chegou em Patu.
     Olhou pela janela e ao ver o trem parado na estação, exclamou irritada:
     - Por que não me acordou antes?
     - Eu bem que tentei, mas não houve jeito da Senhora acordar.
     - Que história é essa? Eu tenho o sono leve.
     Levantou-se com rapidez. O trem apitou, dando sinal de que iria partir. Ela, apressada, pegou uma bolsa e a garrafa d’água e pediu-me:
     - Pelo menos me ajude. Traga a outra bolsa.
     O sino da estação tocou. Ela saiu correndo pelo corredor do vagão; eu corria atrás com a outra bolsa.
     No momento em que ela descia, o trem começou a se movimentar. A queda foi enorme, fazendo-a rolar pelo chão. O vestido levantou-se até a cintura, deixando exposta as partes íntimas. Ao levantar-se gritou:
     - Jogue a bolsa, imbecil!
     Joguei-a. Ao cair, a bolsa abriu-se e o seu conteúdo espalhou-se pelo chão. Eu não me contive, comecei a sorrir, enquanto ela, cada vez mais distante, vociferava:
     - Cretino! Vá para o inferno! Como é que alguém é incapaz de fazer um pequeno favor?!