para quando chegar a clara manhã

Antes do entregador deixar o jornal sempre fora do espaço reservado na soleira da porta, foi que sentiu aquela falta estranha roendo em seu peito. Estava diante da janela. Era dia, ou talvez ainda fosse noite. Mais uma vez, disfarçado de cotidiano, ritmado pela lua minguante que sucumbia às parcas primeiras horas claras, ele assistia amarelar sobre o armário da cozinha uma última lembrança. Lá do outro lado da rua, uma grande gota d’água arrefece uma fração de paralelepípedo; é a anúncio de chuva que promete rebocar um inverno intenso, o mais intenso dos últimos anos.

Alguns segundos mais tarde, a água se derrama pela cidade numa cadência nervosa. Enquanto o vapor que sobe do asfalto ganha os pulmões dos pedestres, que correm apressados até a próxima marquise, a sinfonia da metrópole ensurdece os seus ouvidos e ele esquece, ainda que por alguns instantes mágicos, o som da rotina colado nas roupas amassadas e na deformação dos chinelos de borracha. Tenta infantilmente levantar e seguir, assim mesmo, como se nada houvesse que esperar ou rememorar. A disciplina é o trunfo dos medíocres. Para seguir vivendo é preciso esforço, um descompromisso com essa coisa que queima no peito e é vermelha como os olhos.

Ali mesmo, esperou o dia amanhecer. De pé, em frente à janela da pequena sala acarpetada, a única que importava claridade, podia sentir finos raios de sol furando primeiro as nuvens recheadas de torrente, depois a persiana chinesa com varetas quebradas, e deslizando por cima da pequena mesinha vitoriana posta ao lado do sofá, onde repousava o único retrato que ainda guardava.

A luz do dia evidenciou a foto, pigmentos escureciam a claridade do papel pérola, onde com algum esforço se podia enxergar o rosto de uma mulher de expressão circunspecta, portadora de um mistério forçado no olhar. Ao lado, um relógio de madeira toca a música das seis horas. Um mal jeito no pescoço, um incômodo, e ele ainda acordado àquela hora. Tonto da última garrafa de vinho doce consumida no dia anterior, sentia uma secura no céu da boca, era como se um dreno na garganta puxasse das entranhas uma tosse seca e desritmada que não o largava nunca.

Alguns litros de água, misturados a um suco de uva de ontem faziam descer o sabor acri-doce que preenchia o estômago ainda vazio. Ele destravou o pino do relógio e foi até a cozinha apanhar qualquer coisa. A cozinha andava um tanto abandonada; sem dinheiro para empregada, sem vontade de arrumar ele mesmo, observava a gordura dia a dia transformando o rejunte bege numa espécie de musgo marrom. Tudo no ambiente soava pantanoso, a poeira se acumulava pelos cantos, enquanto ele coçava a barba cinzenta e mordia os lábios inferiores, juntando depois as duas extremidades como se fosse provocar um assobio.

Engoliu o bolo de água formado no garganta e encheu uma pequena vasilha. Caminhou lentamente até a porta para amarrar as sacolas de lixo num canto. Mas sentiu preguiça e voltou os olhos para o fogão. Passou um café, um líquido negro e grosso, sem açúcar, que foi sorvido como se não houvesse outra escolha. Meia fatia de pão com goiabada e dois biscoitos de maisena. Estava feito o desjejum. Le Petit Dejeuner, como eles gostavam de brincar há não muito tempo atrás.

Algum tempo depois ouviu o barulho do jornal posto embaixo da porta e sempre atrasado. Apanhou-o e jogou sobre o sofá.

Um pedaço de maçã mastigada oxida sobre a mesa de centro, ladeada por algumas revistas folheadas e gastas e jornais de dias anteriores. Já está lá há dois dias. Na parede defronte, os azulejos não deixam esquecer, o mundo é frio. Também já faz dias que não desarruma as gavetas, não investe em detergentes e lençóis e também não esmorece ante o caos cotidiano.

Vai até o banheiro e cospe um grosso desencanto que demora a escorrer pelas reentrâncias do tubo. Observa os vidros, sentinelas quebradiças, objetos atraindo cinzas e poluição, decalques, possíveis metáforas.

Ecos de vida lá fora que vençam os obstáculos invisíveis do ar, não o apanham na sua fortificação. O tempo craquelado se parte seco como um chão semi-árido. Dele, nada brota. Escassos são os preenchimentos noturnos, e violáceas as tonturas incuráveis.

A vigília letárgica o atordoa numa ciclicidade medonha. A TV, sempre desligada, projeta no fundo do tubo uma imagem de filme B. Lá está o corpo extinto, as prateleiras, paredes e o pedaço de maçã sobre a mesa. Ele o pega, o pedaço que já não é maçã, é só espectro, disforme e disjunto. Observa as partes amareladas e brancas e sorri para a existência dos caroços ainda intactos, percepção que o faz liberar uma suspiro leve, quase esperançoso.

Amanhã, apesar das certezas solidificadas ainda atravancarem o caminho da porta, pode ser que o sol tímido do inverno ilumine o interior dessas sementes. Revestido pelo colorido da polpa, mora o mais duro, escuro cerne, que é a força propulsora da fruta; aquilo que agente cospe fora, amassa e desintegra é o que proporciona vida, um existir que é maduro e forte, nada a ver com essa coisa besta dos pedestres apressados. A verdadeira vida que ele sabe, é clara, como a manhã do dia mais desejado.

Jan Morais
Enviado por Jan Morais em 11/08/2006
Reeditado em 15/08/2006
Código do texto: T214079