Um dia comum e um jovem diferente

UM DIA COMUM E UM JOVEM DIFERENTE

Março/2010

Ele crescia. Envelhecia, bem na verdade. As calças já se encurtavam. Por vezes, brincavam consigo; diziam parecer um pescador. O rosto ganhara as manchas da vida. A tez já não era a da mesma beleza do dia em que nasceu. Já não lhe davam mais apelidos, nem o convidavam para distrair-se da mesma forma que a sua própria geração. Mas, à parte disso tudo e como se flutuasse num poema de Pessoa, tinha em si todos os sonhos do mundo.

A infância, apesar de seus momentos tristes e dificultosos, sempre lhe era um referencial. Não necessariamente um espelho, senão um meio de constantemente retornar às origens; saber quem afinal era ele. Poucos dos antigos amigos agora lhe acompanhavam. Queria, no fundo, poder encontrar a todos e contar-lhe a que rumo andava sua vida, mas sabia que suas ocupações atuais não gerariam o mínimo de interesse.

Depois de tempos, sempre lhe foi difícil poder se abrir com as pessoas que não o viam cotidianamente. Uma simples pergunta de como ele havia passado lhe era complexa. Prolixo, vendo a isto como um defeito grave em certas ocasiões, somente lhe cabia o sorriso. Respondia-lhes que a vida seguia bem, nada mais. Talvez não fosse esta a resposta esperada, e, por mais que se esforçasse, era tudo o que podia dizer. Muitas vezes era relembrado pelas futilidades do passado, e como que forçosamente obrigava-se a revirar o seu próprio túmulo passado, remontar as peças de um velho esqueleto para fazer a rir um colega. Pois, a seu ver, tornou-se um novo homem e dentre aqueles outros todos dentro de si, reservou o silêncio a alguns.

Seu olhar era melancólico, sem que fosse sua intenção. Por dentro, era feliz. Quem sabe mais que muitos que parecem sorrir a todo instante. Se existem homens em cuja expressão não se pode identificar senão um mistério, este seria o seu caso.

Ao caminhar, compunha poemas inteiros. Contudo, bastava-lhe passar por algo que lhe roubasse a atenção para que tudo se perdesse.

Era dono de uma memória fraca. Anotava a tudo não de maneira compulsória, de um Dostoievsky que se vê na obrigatoriedade de escrever algo às pressas; e sim porque, para além de todas as outras coisas, era ele o seu mais importante leitor.

Desorganizado, nunca lhe foi possível manter a regularidade de um diário. Queria descrever nos mínimos detalhes os acontecimentos de um só instante; o que se passava consigo, com os mais próximos, com o mundo. Assim se perdia. E vez ou outra, sempre caía no erro de achar que finalmente estava maduro o suficiente, quando na verdade nunca havia de estar.

Ele era alguém que por seguir seu próprio passo, podia causar espanto. Contudo, era dócil. Boa pessoa. Suas preocupações pareciam não estar naquilo que o cercava. As roupas, agora curtas, faziam-lhe pensar que havia crescido demais dentro de si mesmo. E por um instante, acreditou seguir o rumo de Zaratustra. Mas logo mudou de idéia. Não queria acreditar que estava preparado o suficiente.

E para tanto, aquela sua manhã havia começado tarde. Um sono pesado parecia lhe roubar horas preciosas nos últimos dias. E isto o afetava. Deixava os afazeres em segundo, terceiro plano. Uma inquietude parecia pairar sobre si, quando a preguiça o dominava. Pensava com intensidade, mas seu corpo rebelava-se contra si, desrespeitava sua vontade e se mantinha imóvel.

Somente a ação pôde trazê-lo ao ânimo de vida. Banhou-se em água fria. Fez movimentos com o corpo. Organizou ao ambiente que o cercava. E decidiu estar próximo do jejum, cujo único alimento lhe era um chá.

Tão logo, ocupou-se de duas atividades. O ambiente quieto e frio lhe era aconchegante. Poucas foram as vezes em que torceu tanto para ter tempo para si mesmo. Tinha à sua disposição pouco menos de duas horas, antes que os compromissos o chamassem. Desejou, por um segundo, transformar aquele período em uma sensação de eternidade.

Começou com o xadrez. Pensava que ao forçar sua concentração, deixaria a outros planos abaixo todas ou ao menos parte da inquietude matinal. E assim o fez. Aplicou-se e pôde, para sua sorte, vencer a máquina que o enfrentava. O sorriso roubou-lhe o rosto, como se estipulasse que daquele momento em diante, as horas passariam depressa e o contentamento lhe seria constante.

Partia então para a leitura. Era a Wagner a quem ele recorria, com quem deveria se ocupar. O espírito trágico e heróico, postos nas entrelinhas de uma verdadeira filosofia desenvolvida através de melodias e cantos. Lia sobre a pausa que Wagner deu ao compor Parsifal, suas cartas com Liszt, os gostos compartilhados com a esposa. E até que seu ônibus chegasse, assim esteve submerso em um mundo que não lhe pertencia senão no coração.

E encostado ao ponto, pensou:

"Como são os dias! Teria eu previsto que uma onda de descontentamento e mesmo falta de compromisso com a vida me traria, instantes depois, uma recompensa tão valiosa? Parece-me que pouco sei da minha própria vida, chegando a esquecer das proporções que gestos tão simples são capazes de tomar. Procurei apenas preencher um vazio que havia dentro de mim, não sei por que motivo, e logo sou levado ao ápice. Que mistério é a vida!".

Não sabia escrever senão a seu próprio respeito. Talvez fosse um grande defeito seu; não queria fazer crer ser uma dádiva, embora reconhecesse que a muitos, isto era dificílimo. Se para alguns abrir-se com os seus próprios papéis constituía um sacrifício, para ele aquilo tudo era uma obrigação satisfatória.

Ao tomar os ônibus, ele sempre passava a impressão de ser um estrangeiro, por mais que vivesse a vida toda no mesmo lugar. Seu jeito atrapalhado por vezes o irritava, mas a cada dia isto se tornava mais inevitável. O tremor das mãos. As pernas compridas. A bolsa grande.

E quando o mesmo ônibus cruzou uma grande avenida àquele dia, ele esteve pensativo. Ao mesmo tempo, caía por encanto ao observar os lugares que compunham sua infância. Casas de luxo agora habitavam naquele mesmo matagal que ele notava e exercitava a imaginação, todas as vezes que retornava da aula. Olhava a agora sempre fechada casa de uma amiga, bastante velha, que nunca permitiu ver a coleção de seus brinquedos. Como tudo havia mudado em tão pouco tempo!

Saiu então a caminho dos seus estudos. As calçadas, a grama, o sol ameno. O cenário era o mesmo, sempre o mesmo. Mas, talvez à moda de Nietzsche, algo havia rejuvenescido seus olhos. De longe avistou um amigo e foi em sua direção. Estava feliz, pois procurava a alguém com quem conversar.

Tão logo que se deram a mão, começaram um diálogo. Ele não conhecia aquele seu amigo há muito tempo. Desde que ouvira dizer que seu aspecto visual estava necessariamente ligado com certo envolvimento com o paganismo europeu, decidiu procurá-lo. E em pouco tempo, descobriu nele uma pessoa bastante especial e, sobretudo, de poucas companhias.

Dizia este seu amigo: "Dias atrás comprei a série de livros do Tolkien. Não sei se você o conhece", "Sim, claro!", "Mas não sei que critérios eles usam para a tradução. Por isto, comprei a versão original em inglês", "Na verdade, parece-me que a tradução destes livros mais conhecidos é feita de modo simultâneo. Junta-se uma equipe de tradutores e em poucas horas o livro está concluído. Não existe, assim sendo, aquele preparo, aquela paciência, aquela profunda reflexão que faz com que um tradutor praticamente tenha um papel árduo, como se reescrevesse o próprio livro que está a traduzir", "É realmente uma pena". E tudo corria às proximidades da Biblioteca, cujas portas ainda estavam fechadas. Em dado momento, o rapaz lhe disse: "Inclusive, as línguas que Tolkien inventou para escrever suas histórias são muito interessantes", "Ouvi dizer que se aproximam do finlandês", "Sim. E ele passou muito tempo a estudar as mitologias. Incrível é de se imaginar que seu primeiro livro foi escrito para ser narrado aos seus próprios filhos... Sabe, às vezes eu penso que se o mundo passar por uma nova catástrofe e seus escritos forem achados, a interpretação para a origem da humanidade poderia ser completamente diferente", "Sim, certamente! Que grande idéia esta sua!".

Falavam então sobre os estudantes universitários. Dizia o amigo: "Os estudantes parecem sempre estar focados em uma área apenas. Dias atrás um colega me convidou para participar de uma festa que custaria sete reais. Eu possuía o dinheiro, mas, para disfarçar, disse que havia comprado alguns livros e, portanto, sem possibilidades de participar. Ele me perguntou: 'Ah, livros para o seu curso de Física?', 'Não... Livros de literatura’. E ele então ficou espantado. É estranho. É como se não pudéssemos nos interessar por outras áreas. Eu me pergunto: o que eles fazem, quando não precisam freqüentar a universidade? Eu cumpro as mesmas funções que eles todos. Estudo, muito obviamente. Às vezes almoço aqui. E assim por diante. A única diferença é a de que ao invez de me sentar à frente da televisão, quando não se possui trabalhos para fazer, eu procuro ler. Confesso que já tentei assistir televisão, mas me é difícil. A começar pelas novelas. Aliás, as novelas propriamente ditas, como um 'Guerra e paz', de longe não podem ser comparadas com o que está na televisão", "Certamente. Você percebe que na verdade elas lançam uma moda e uma mentalidade nova a cada momento. A recente novela sobre a Índia é um grande exemplo disso. Até então, ninguém parecia dar importância para aquele país asiático; alguns sequer sabiam da sua existência. Hoje, no entanto, a deturpação do misticismo indiano se tornou uma moda vista em qualquer canto. Em qualquer cidade de pequeno porte você deverá encontrar uma ou mais lojas especializadas em 'roupas indianas' e outros utensílios; em outras palavras, um meio de se 'comprar o misticismo'. A verdade é que parecemos viver a profecia de Orwell em 1984", "Sim! Dias atrás, inclusive, eu conversava com o meu irmão a respeito disso. E ele disse que a impressão que se tem é a de que Orwell tomou uma máquina do tempo e olhou nossa própria realidade antes de tê-lo escrito".

E dos efeitos da televisão, falou-se da recusa da identidade nos tempos atuais. Seu amigo lhe expunha sua visão a respeito: "Com os cabelos, por exemplo. Não é o nosso caso, colega de cabelos compridos também... Mas, tornou-se praticamente raríssimo ver mulheres com cabelos que desconhecem tintura", "Tenho a impressão de que vivemos a verdadeira Era Mengele. A mídia constantemente explora o caso desse médico alemão que fugiu para o Brasil durante a Segunda Guerra Mundial. Pouco se sabe a seu respeito. Mas, o retrato das suas ações parece coincidir com a nossa realidade atual, na qual certamente ele não tem o menor papel. Hoje é possível fazer cirurgias para mudar a cor dos olhos. No Japão, segundo um amigo, existem vários casos de bebês que têm as pernas quebradas logo ao nascerem; passam por um processo doloroso para que, finalmente, atinjam uma altura superior àquela provinda da própria biologia. Com os cabelos, a imaginação não encontrou limites. Com o sexo, a mesma coisa. Os resultados são grosseiros em muitos casos. E isto apenas nos mostra o quanto o homem tem se distanciado da natureza. Para ser honesto, nunca vi um leopardo desejar possuir patas de elefante (e se o fizesse, por certo nós o perceberíamos) ou um urubu que não aceitasse sua própria natureza de devorar carcaças. Contudo, as coisas parecem seguir este rumo. É simplesmente incompreensível ver pessoas se submeterem a tratamentos de bronzeamento artificial, que são cancerígenos, para possuir uma cor de pele diferente, ou, como foi o caso do recentemente falecido ídolo de inúmeras gerações, que passou o resto da vida debilitado porque não aceitou quem ele era de verdade, tendo se submetido, por conta própria, ao consumo excessivo de remédios controlados".

Deste modo, caminharam até certa altura. Seu amigo, de modo generoso o acompanhou até próximo de sua sala.

Assistiu a suas aulas com atenção. Quando lhe era possível perceber que o professor se desviava do assunto, voltava-se com pressa aos seus cadernos e, de modo incompreensível, registrava em tópicos o que lhe era preciso fazer no dia seguinte e o que havia conversado de mais importante com as pessoas mais próximas. Assim era ele.

Deste modo, retornou. Desejou ler enquanto tomava o ônibus de volta para casa, mas a lotação lhe impediu e, para sua surpresa, também o distraía. Uma moça ocupou-lhe os olhos durante alguns segundos. Ele a observou pelo reflexo que o vidro ao lado lhe proporcionava.

E após todos os seus afazeres, que se constituíam de leituras, escritos, tarefas domésticas e alimentação, escreveu uma pequena nota quando, acompanhado de seu caderno, pretendeu dormir. Não era senão a seu próprio respeito.

"Bocejava, mas não queria fazê-lo. A madrugada lhe era tão agradável, apesar de estar consciente de que quanto mais a saboreasse, mais desgastante seria o seu próximo dia. Mas ele queria, ao menos naquela ocasião que instantaneamente transformara em especial, praticar o pecado da gula; tirar proveito de uma madrugada chuvosa, que aos seus ouvidos era dotada do mais belo silêncio.

Até que o sono empunhasse a espada diante de si, queria ele perceber a beleza em tudo que o cercava. Os objetos aglomerados, os livros velhos, empilhados em um canto; tudo agora lhe abria um sorriso. Um instante de agitação lhe roubava: queria ler sobre os mais diversos assuntos, ao mesmo instante em que tudo ocorria. Mas, ao mesmo tempo, era capaz de simplesmente sonhar. Uma coisa puxava outra. Uma palavra fazia lembrar outra.

E assim seguiu. Ao som da chuva, passeava os olhos e trocava de página, embora em nada absorvesse seu conteúdo. As últimas cenas que teve diante de si foram as do seu próprio dia.

As pálpebras então lhe pesaram. Sem conter, dormiu".

Deste modo, encerrou-se o dia comum na vida de um jovem diferente.

Newton Schner Jr
Enviado por Newton Schner Jr em 19/03/2010
Código do texto: T2146605