MORTE BISADA

     A rua estava deserta. A escuridão e uma fina chuva, permeada por relâmpagos em intervalos regulares, davam-lhe um ar misterioso.
     Lá dentro da casa, Dona Estelita lutava contra o frio, agasalhada num casaco de lã cheirando a mofo. Levantou-se da cadeira de balanço, desligou o rádio – cujo som se tornara insuportável – e dirigiu-se à janela. Com as mãos, limpou o vidro embaçado e pôde observar alguém caminhando sob a neblina. Percebeu que era um homem. Protegia-se com um guarda-chuva. Com largas passadas não demorou a chegar em frente a casa. Parou, retirou do bolso do casaco um pequeno papel e, depois de o observar cuidadosamente, aproximou-se do muro para ver o número da casa. Dona Estelita sentiu um forte calafrio. “Quem seria aquele homem?”, pensou. Ora, ela morava sozinha havia mais de 20 anos. Enviuvara de forma trágica num acidente que, além de Alfredo, o seu marido, morrera também Elvira, a sua única irmã. Eles retornavam da capital depois que Elvira havia se submetido a um tratamento médico. O carro, dirigido por Alfredo, caíra num rio. Os corpos não foram encontrados, apesar de esforços empreendidos durante muitos dias. Desde aquele dia, Dona Estelita, que era uma pessoa alegre, tornara-se triste. Pouco saía de casa. Aos domingos era sempre vista na missa, porém isolara-se do mundo. A tragédia a transformara numa pessoa taciturna.
     E agora aquele homem viera quebrar a rotina daquela casa sombria. Temerosa, ficou alguns instantes espreitando pelo vidro embaçado da janela o estranho homem, que permanecia parcialmente encoberto pelas roseiras – resquícios de vida que se mantinham preservados naquela casa. Desviou um pouco o olhar e as batidas do coração aceleraram mais ainda quando ouviu o toque da campainha. Poderia simplesmente ignorar a visita, entretanto criou ânimo e aproximou-se lentamente da porta. Não tinha muito a perder. Talvez a vida. Mas o que era a vida para ela? Afinal não pedira tanto a Deus nas suas orações para que a levasse para junto de Alfredo e de Elvira? Chegou próximo à porta e, com a voz fraca, perguntou:
     - Quem é?
     - Por favor, abra a porta! Quero falar com Dona Estelita – respondeu o estranho.
     - Mas, o que você quer com ela?
     - É uma coisa muito importante e não posso dizer aqui de fora.
     “Que importância teria mais qualquer coisa na vida?”, pensou Dona Estelita. Tentou ainda olhar pelas venezianas, contudo, a escuridão a impediu. Decidiu abrir a porta. Rodou lentamente a chave e depois abriu de forma parcial a porta. Deparou-se com um jovem, que deveria ter em torno de 18 anos de idade. A roupa estava encharcada pela chuva. Os olhos negros fitavam-na com atenção.
     - Posso entrar? – Perguntou o rapaz
     - Entre!
     - A senhora é Dona Estelita? – Indagou o rapaz, enquanto fechava o guarda-chuva.
     - Sou...Quem é você?
     - Eu me chamo Lucas.
     - O que você quer comigo?
     - Posso sentar-me? – Perguntou Lucas, apontando para uma cadeira.
     - Sim...Sente-se.
     Lucas sentou-se, olhou para Dona Estelita de uma forma piedosa, e disse:
     - Acho melhor a senhora também se sentar.
     Ela olhou para outra cadeira, indecisa, e respondeu:
     - Prefiro ficar em pé. Agora me diga o que realmente você quer comigo.
     - Bem...Eu vim aqui para dizer que a sua irmã Elvira morreu!
     - Moço, eu sei disso há mais de 20 anos – respondeu ela com desdém.
     - Creio que a Senhora não está me entendendo bem. Eu quero dizer que ela morreu de verdade...Refiro-me à morte física.
     - Isso mesmo: Elvira morreu no dia oito de março de 1952, no mesmo dia em que Alfredo, o meu marido, morreu.
     - Desculpe-me, mas ela morreu há apenas dois meses.
     - Ela era minha irmã e morreu há muitos anos. Você está pensando que eu sou louca?
     - Não, de forma alguma. Eu estou querendo esclarecer os fatos: Elvira era minha mãe e, antes de morrer, pediu-me que a procurasse.
     - Mas, como é que pode? Se ela morreu juntamente com Alfredo.
     - Alfredo era o meu pai e morreu há cinco anos.
     Dona Estelita, que andava de um lado para o outro da sala, empalideceu e sentou-se numa cadeira ao lado da mesa. Colocou as mãos na cabeça e disse:
     - Que história é essa?
     - A Senhora realmente tem razão: a história é um pouco confusa – prosseguiu Lucas-, no entanto, é verdadeira. Minha mãe quando estava doente, nos seus últimos dias, contou-me tudo que aconteceu. Disse-me que quando morava aqui, mantinha secretamente um caso com o meu pai, que era seu cunhado. E que fora levada às pressas para fazer um aborto na capital, enquanto todos pensavam que era outro tipo de cirurgia de urgência. Quando o meu pai foi pegá-la, surgiu a idéia de fugirem para bem longe. Executaram o plano com perfeição, jogando o carro no rio e fugindo. O arrependimento não tardou, porém não havia mais como retrocederem.
     - Se tudo isso é verdade, por que você veio me contar? – Perguntou Dona Estelita, aos prantos.
     - Porque minha mãe mandou-me procurá-la para pedir perdão.
     Dona Estelita tentou balbuciar algumas palavras, porém, foi impedida por uma incontrolável crise de choro. Sua mente confusa pensava: “Então foi isso o que aconteceu? Quem morreu durante 20 anos fui eu? Coloquei luto, chorei e rezei pela alma do meu marido e da minha irmã durante anos. Sofri sozinha, sem ter qualquer pessoa para me consolar, enquanto eles desfrutavam a vida distante daqui”. Com a voz trêmula desabafou:
     - Como posso perdoá-la? Só Deus sabe o quanto sofri durante esses anos.
     - Minha mãe também sofreu muito, arrependida. Além disso, passou mais de um ano com câncer no seio. Ela teve um final muito triste – disse Lucas.
     - E Alfredo? O que aconteceu com ele?
     - Meu pai morreu atropelado por um automóvel.
     O silêncio reinou durante alguns minutos. Lucas levantou-se e se aproximou de Dona Estelita que permanecia imóvel com a cabeça baixa, chorando. Colocou as mãos sobre os ombros dela e disse:
     - Tia Estelita, a chuva cessou. Vou aproveitar para partir.
     Ele curvou-se um pouco e a beijou na face banhada de lágrimas. Pegou o guarda-chuva e dirigiu-se à porta. Quando abriu a porta para sair, Dona Estelita levantou-se e, com esforço, disse:
     - Espere...Não vá embora, por favor!
     Ele parou. Contemplou o rosto sofrido da tia. Ela veio em sua direção e um longo e meigo abraço marcou o início de uma convivência pacífica entre tia e sobrinho, que perduraria pelo resto da vida.