VINGANÇA, PRATO PARA SER SERVIDO FRIO.

Com o corpo encurvado na penumbra de seu túnel, com o pulmão ardendo pela dificuldade em respirar, faziam com que aquele homem alto e magro sofresse mais dos que os outros.

Sua coluna doía muito. A posição para escavar a terra no túnel de um metro e sessenta de altura por um metro e meio de largura não permitia outra forma.

Podia aumentar a largura e a altura.

Mas quanto maior e mais largo mais se convive com o perigo de desmoronar. E naquelas bandas, ninguém ajuda ninguém.

O túnel descia e Grilo calculava já ter vencido uns 45 metros de profundidade. Mas ainda faltava tirar muita terra até chegar ao seu sonho.

O buraco não tinha ventilação forçada, cheirava a mofo.

Respirar exigia muito esforço. Sem se incomodar com isto o garimpeiro só prestava a atenção na picareta, levantada até o peito, que pela falta de espaço exigia mais a força dos braços para enterrar seu bico chato na terra prensada, vermelha e dura.

Encher o carrinho e voltar para a superfície de costa, para descarregar a terra retirada e respirar com mais alivio. Logo voltava para o seu inferno.

Ao lado, na altura de seu ombro, a “corrida” dos cascalhos às vezes coloridos, formando um caminho estreito apontando sempre para baixo. Era o “rastro” um fenômeno geológico que poderia ser um indicativo de formação das pedras boas.

Para ele, era impossível errar. Ia “bamburrar”, como falavam ao achar as pedras boas.

Era este caminho incrustado na parede do túnel, que o garimpeiro seguia para achar a liberdade, o sossego e o conforto.

Ele estava quase colocando as mãos nas turmalinas que tanto sonhava.

Para amenizar a dor e a decepção de cada dia, Grilo pensava no jeep que ia comprar e na terrinha em Malacacheta, perto da mãe.

Daria para Vanda, aquela morena bonita, a casa. Compraria um rádio, o violão novo e da bica, levaria para dentro da casa água da nascente. E a esperança era o seu analgésico.

O dia só terminava quando escurecia. Grilo, tossindo, tirando do pulmão o resto da fumaça do lampião aceso pelo gás produzido pela reação da água com o carbureto.

No escuro, voltava para casa, um barraco feito de lona e palha de coqueiro, lavar os pés, o rosto e comer a sua única refeição do dia. Depois, adormecia como um menino ouvindo as histórias contadas pela sua mulher.

Vanda com um inseparável lenço na cabeça esperava com a comida feita no único utensílio de cozinha que tinham. O caldeirão amassado e preto de fuligem, fervendo no fogo de brasa aceso no chão. Sua companheira era tudo que um homem poderia ter. Fogosa nas noites de amor, o estimulo que precisava quando o desânimo tomava conta, a enfermeira para os seus ferimentos e a melhor comida que em sua vida havia provado. Ele sabia que já havia tirado a sorte grande. Só não alardeara.

No garimpo a notícia espalhou como um rastro de pólvora. Passava de um grupo para o outro com a rapidez que se exigia.

A notícia subia morro, entrava nos rios, intrometia nos túneis e infiltrava em todos que ali estivessem.

Ninguém queria acreditar, mas ninguém duvidava: João das Mulas que de longe parece feio e de perto é mais feio ainda, havia deitado com a mulher do Grilo, enquanto ele trabalhava nos seu túnel.

O mulato baixo e forte, com uma cicatriz feia que cortava em diagonal da testa até a ponta do queixo, puxando a sua boca num esgar horrível de se olhar e quando falava, ria ou comia, ficava mais horroroso ainda.

A marca feia e grossa era herança de umas das intermináveis briga quando ainda era menino.

As confusões do João era o que ele mais fazia questão de contar em pormenores, talvez para manter a fama de mau e imperdoável para com os inimigos.

João das Mulas tinha fama de valente pelas oito mortes conhecidas em sua costa. Todos que o enfrentaram, tiveram o mesmo destino.

Todos abatidos a faca, tiveram a barriga cortada em um só golpe.

Este pormenor do “cortar a barriga” era o que lhe dava a maior satisfação. Virou na verdade sua marca registrada.

O prazer maior era ver o intestino cair pela fenda aberta a faca, fazendo a morte para o seu inimigo ficar e parecer mais horrorosa.

Enquanto isto, ria, soltando uma gargalhada alta e estalada, e entornando sobre as tripas do moribundo a sobra da cachaça que seria do “santo”, encerrando o seu teatro.

A notícia de uma possível luta entre o Grilo e João das Mulas dava um frisson nos homens do garimpo de Zé Bernardino, nas terras do norte de Minas, no município de Malacacheta.

Eu e todos do garimpo esperávamos pela luta. As apostas começaram e Zé das Mulas era o favorito.

Grilo recebeu a noticia quando saiu do túnel, isto já à noitinha. Ouviu calado, e calado foi andando encurvado pela força do costume. Na tapera, não falou nada para Vanda.

Começou o seu ritual de se lavar como fazia todos os dias.

Foi ela quem não agüentou o silêncio do companheiro e trocou as histórias pela falação, desmentido a história já sedimentada na comunidade.

E pedia pelo amor de Deus para que Grilo acreditasse nela.

Para provar que falava a verdade, jurava pela Bíblia e pela alma de sua mãe, falando alto misturando suas palavras com seu choro.

Grilo quieto comeu o que lhe foi oferecido sempre de cabeça baixa com o olhar fixo no prato.

Calado, foi deitar. No garimpo, quando perceberam que Grilo não faria nada, a vaia foi geral.

João das Mulas cercado como herói, valente repetia em frente a maloca do Grilo, provocando, falando, gritando para ser ouvido com clareza, de como tinha deitado com a mulher do Grilo.

E falava mais alto ainda como mamara nos peitos de Vanda.

Seguia-se uma gargalhada, aquela sua sinistra gargalhada. E a pinga corria solta.

As duas ou três horas da manhã, todos cansados pela farra, adormecido pelas doses de cachaças, distribuídas pelo João, fomos aos poucos esticando em redes ou caindo pelo chão.

O sol brilhou como nunca naquela manhã. A comunidade do garimpo de Zé Bernardino acordava com a boca seca, a cabeça doendo.

O dia veio rápido para tanta preguiça. Só fervilhou quando um grito vindo do lado da rede do João, embaixo da figueira frondosa, o melhor lugar para se armar a rede.

Correria para ver a cabeça do João das Mulas com a boca aberta do jeitinho quando ria, agora com a cicatriz ficando muita mais feia, separada do corpo, no canto da figueira.

O resto do seu corpo, arrastado pela rede, jazia esticado de bruço longe da cabeça.

A força do golpe foi tão forte que separou também a rede. Só um tempo depois é que foram prestar atenção no chapéu do João, guardando o intestino do bravo mulato brigador, João das Mulas.

Todos correram para a maloca do Grilo. Lá estava Vanda, com os olhinhos fechados no seu sono eterno. Seu corpo com os braços cruzados, as mãos tocando os ombros, como em um abraço, despedindo do companheiro.

Do Grilo, nunca mais ouvi falar dele.