A moça e o machismo tocantinenses

Alessandra gosta de viver em Araguaína. No inverno, o clima é muito agradável. Ali nasceu e foi criada, sem nunca ter ido a outros ambientes a mais de duzentos quilômetros, afeiçoando-se por isso fortemente ao lugar. É bem apessoada. Bonita como geralmente o são as moças tocantinenses. Arruma-se o melhor que pode para ir à faculdade. Vai a pé. Quando possível, pega carona. No trajeto até a universidade atravessa um descampado agradável de ser observado pela manhã, margeado por ruas largas e sem asfalto, mas planas, cuja terra, misturada a um tanto de areia, após uma chuva fina, até amacia os passos de quem não tem pressa para morrer, porque ela sabe que todos os caminhos apressados dos homens dirigem-se à morte. Esta, porém, é dama inglesa: não se adianta nem se atrasa, corra ou não quem vai ao seu encontro. A moça sabe que o que disso passa é mera coincidência.

Ela sempre saía de casa com bastante tempo, suficiente para aproveitar bem a caminhada matinal, entre sete e sete e meia. As mangueiras, nos quintais das poucas casas do perímetro, são altas e de copas pomposas, boas para se admirar _ meditava. Estudante tranqüila, nem imagina que também vinha sendo observada por um admirador atento, que já a estudava ao cortar caminho, havia alguns dias.

Num dia desses, ao atravessar quase a metade do descampado, sentindo-se seguida por alguém, nem ousa olhar para trás e apressa os passos, mas é freada por uma gravata. O marginal, mantendo-a imobilizada pelo forte tranco, tenta abrir sua calça jeans, avisando-lhe que estava armado, se gritasse usaria a faca. Como vale nessas horas um cinto bem apertado! Alessandra, mesmo tremendo, chutou-lhe uma das pernas, o que o enfraqueceu, forçando-o a soltá-la por um instante. Tentou correr. Ele, contudo, empurrou-a, deixando-a com o rosto maquiado de areia e terra. A luta foi intensa para que ela protegesse seu tesouro daquele tipo abjeto de pirataria. Quando pareceu que perderia as forças, durante o vale-tudo no tatame, às vezes movediço, o marginal tombou para o lado, atordoado pela paulada que recebeu. O admirador atento da estudante apareceu momentos antes de ser o crime, irreparável, consumado.

Sem entender a própria aflição, levantou-se, pegou os pertences, agradeceu ao homem, que novamente se sustentava por uma única perna, apoiado pela muleta, a espada com a qual a defendera, e já se ia quando percebeu o pirata se levantando e inclinando a faca em direção a ele. Gritou. Por pouco, pouquíssimo mesmo, a faca lanhou apenas o ar. Furiosa, a coragem a conduziu a uma nobre e voraz atitude de defesa, não sabe se de si ou do próximo: puxou a muleta do homem e arrepiou a face do bandido, deixando-o desmaiado no chão. Pediu ao homem para se apressar em fugir, no que foi atendida, e danou-se a correr.

Não soube se matou o desprezível que a quis violentar, mas soube o quanto, na sua cidade, essas ocorrências são banalizadas pelas autoridades: não conseguiu fazer o boletim na delegacia para a qual se dirigiu. O cinismo dos funcionários a inibiu de prosseguir com o relato. Esperava ser tratada com o devido respeito e a necessária atenção. Entretanto, o olhar de pouco caso e as piadinhas maliciosas, de quem deveria tomar sua defesa, machucaram-na tanto quanto a tentativa de abuso do marginal, que não conseguiu fazer valer seu direito de cidadã.

Saiu dali magoada e, por um momento, pensou o quanto seria educativo se a próxima vítima dessas violências, que ali vinham se tornando comuns, fosse a mulher, a irmã ou a filha de uma daquelas pessoas. Quem sabe sentindo pela pele do ente querido essas mesmas afrontas covardes mudassem de comportamento. De volta a sua casa, ponderava sobre a distância que separava a consideração e coragem que viu naquele homem de muleta da insensibilidade e negligência daqueles repugnantes funcionários machistas, homens e até mulheres.

Janete Santos
Enviado por Janete Santos em 07/04/2010
Reeditado em 13/05/2011
Código do texto: T2182611
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