O MENINO QUE QUERIA SER DOUTOR - Capítulo IV

O ano de 1963 já ia pelo mês de setembro, quando vó adoeceu e morreu no final do mês, mais precisamente no dia vinte e oito.

Foi uma tristeza! Vó era muito querida por todos nós. Era uma vozinha muito mimosinha, magrinha, usava as roupas muito justinhas, a blusa, porque a saia era bem rodada e batia nos tornozelos. Todas as tardes fazia biscoitos para nós. Cada biscoito tinha um apelido. Ainda lembro-me de sua voz, meio rouca, dizendo, ao tirar os biscoitos da gordura: "Este aqui é o rompe-ferro, é do Pedro. Este é o alemão, é do Orlando, sempre branco como gosta. Este é o gira-mundo, do meu querido "Doutor". Este aqui é o lambe-lambe, da Maria do Rosário, que lambe... lambe e não come, acaba jogando para os cachorros. Este é para o Lázaro, é o corre-atrás-pega-na-frente, porque nunca vi menino tão esperto. Este é boneca, da Terezinha que gosta tanto de boneca. Este é do Geraldo, é o limpa-tripa, porque é muito guloso e comilão. Este é o tiquinho para a minha fortezinha Juraci, caçulinha..."

À noite tinha sempre uma historinha para nos contar. Das inúmeras histórias que nos contava eu gostava mais a do medinho que era assim: "Havia um menino, o Joãozinho, que era muito sapeca, inteligente, prestativo. Mas uma qualidade superava todas as outras que tinha. Era por demais corajoso. Nada, mas nada mesmo lhe impunha medo. Seu padrinho morava numa fazenda vizinha. Joãozinho ia visitar o padrinho todos os dias, sem falta. Ele saia ali por volta das quatro horas da tarde. Conversava, conversava e se esquecia do tempo, quando dava por conta já era tarde da noite. Por mais que o padrinho pedisse para ele ficasse, ele preferia dormir em casa mesmo, pois tinha um macaquinho de estimação e o macaquinho não dormia enquanto Joãozinho não chegava. Seu pai ficava bravo com ele e dizia: "Você não tem medo de andar nesta ecuridão, Joãozinho?" "Eu não, papai, eu não tenho medo de nada! E por falar em medo, o que é medo?" "Medo é uma coisa branca que faz um barulho horrível... Qualquer dia destes ele aparece para você e você vai morrer de medo." "Ah! Se ele aparecer eu converso com ele. Pode deixar, papai, a gente se entende!

Seu pai estava arquitetando um plano para lhe meter medo.

Um belo dia seu pai achou como fazer-lhe medo. Foi esperá-lo na estrada com um lençol branco na cabeça como um fantasma.

Lá vinha Joãozinho cantando pela estrada, quando ouviu um ruído que parecia uns urros. Ele pensou: "É certo que deve ser o tal medo que papai tanto fala!"

Foi chegando mais perto, chegando... chegando... quando se deparou com um vulto branco por detrás de uma moita. Chegou mais perto e disse: "Ah! É o medo, e olha que engraçado! Ele tem um filhotinho..."

Quando seu pai olhou para trás e viu aquele vultozinho branco, saiu em desabalada carreira. Joãozinho quase morreu de rir vendo o vulto grande na frente e o pequeno atrás, aí ele gritou: "Corre medão, que lá vai o medinho atrás."

Chegou em casa a morrer de rir. Seu pai estava sentado numa cadeira com o coração saindo pela boca. Aí que foram ver que o macaquinho havia pego um pano de prato branco e foi atrás do pai de Joãozinho.

O pai de Joãozinho nunca mais se importou com a coragem do filho e ele continuou a passear à noite sem nenhum medo."

* * *

A morte de vó trouxe um vazio enorme àquela casa. Ficávamos a procura de algo para fazer, com a esperança que se ocupássemos o tempo, esqueceríamos com mais facilidade.

Eu gostava muito de ajudar minha mãe nos serviços domésticos, aliás, no bom sentido da palavra, eu até levava jeito. Ajudava a cozinhar, lavar roupa. Meus irmãos às vezes ficavam gozando de mim me colocando apelidos femininos, mas eu não ligava. Eu sempre pensava que aqueles serviços não iam me trazer mal algum, pelo contrário.

- Prefiro ajudar mãe na cozinha do que ficar com as mãos grossas de calos, porque quando eu for estudar não vai dar nem para pegar no lápis de tão grossa a mão. - falava sempre.

Na hora de ir para a roça capinar, iam com meu pai o Pedro e Orlando que gostavam muito de ajudar no roçado.

Vô Sebastião ficou como rato tonto que leva uma paulada na cabeça e não morre. Vivia a reclamar:

- Oh! Meu Deus, eu não agüento ficar sem minha Maria, me leva também, oh! Pai! Leva-me para junto dela!

Juntávamos todos a falar com ele que estava tão triste sem vó, imagine sem ele também. Com nossas palavras ele ia se conformando. O tempo foi passando e aos pouco fechando a ferida em nossos corações.

Maria Lúcia Flores do Espírito Santo Meireles
Enviado por Maria Lúcia Flores do Espírito Santo Meireles em 17/08/2006
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