Classe européia

Fernanda havia se mudado para a Inglaterra, após cursar a excelente faculdade de Letras do fundão, no Rio. Bem educada, com excelente formação, culta, Fernanda era quase uma expert em Shakespeare e para ela, nada mais natural do ir buscar enriquecimento intelectual nas terras do Bardo.

Fernanda aterrissou em Heathrow numa tarde de setembro e foi, como combinado saudada pela família com quem moraria, e em troca prestaria favores de babá. Uma babá especializada em Shakespeare. Mas Fernanda sabia que babá era apenas um pretexto e ponte para um mundo maior, mais culto, mais parecido com ela. Afinal, ela agora morava na Inglaterra, na terra de seu idolatrado escritor, terra de conquistas, revolução industrial, império, monarquia, economia sólida e próspera, civilização!

Fernanda mentalizava um adeus longo, prazeiroso e com gosto doce e farto à sua terra tupiniquim, de corrupções, burocracia, protecionismo, novela das oito, gente sem educação e suada, pivetes, selva! Fernanda sentiu um instante de superioridade e pena do resto que ficou para tráz. Sorriu pensando na sua prima que a cada semana comprava uma roupa nova, porque na pracinha da cidade, nao podia repetir o visual... Quanta limitação!

Assim Fernanda acordou no seu primeiro dia na Inglaterra. Cheia de si.

Fernanda estava morando fora de Londres e não sabia. Achava que era pertíssimo da Trafalgar Square e que era praticamente londrina. No seu primeiro fim de semana livre, Fernanda se aventurou e pegou o trem até Charing Cross, para ir visitar a linda e grátis Galeria Nacional.

Fernanda não esperava, mas esta viajenzinha custou a ela aproximadamente 1 hora e 25 minutos... Fernanda estava desapontada, pois achou que fosse ser praticamente vizinha do Tony Blair. As horas do seu sábado foram passando e Fernanda foi se familiarizando com sua nova pátria. Onde estavam os punks, os pubs, as senhoras elegantes tomando chá das cinco, os homens elegantes com guarda-chuvas, a rainha?!

Fernanda olhou à sua volta e percebeu que estava cercada por japoneses fotografando cada piscar de olhos de cada indivíduo que passesse na frente deles. Havia também um número considerável de copos e embalagens do McDonald’s jogados pelo chão. Mendigos na estação... tudo bem que falavam inglês, mas eram mendigos e estavam pedindo esmola. Fernanda estava horrorizada. Os ônibus de dois andares eram imundos, com chicletes grudados em cada assento e rostos mal encarados no andar de cima. A linda cabine telefônica, era banheiro e tinha um odor correspondente. Apesar disso, Fernanda ligava para a sua casa no Brasil, sempre de uma destas cabines e não levou muito tempo para perceber que eram também quadro de propaganda grátis para moças disponíveis, vindas da Rússia e da Tailândia.

Fernanda sentiu-se decepcionada, perdida e sem referências. Cada imagem que tinha, era cruelmente desconstruída e esmagada a cada passo, a cada olhar mais atento.

As pombinhas lindas que voavam com sua corridinha de estrela de cinema em sua imaginação, eram parte de um comercial romântico onde a moça e o rapaz se beijam, enrolados em cachecóis, no frio cinza de Londres. Realidade: eram fétidos pássaros que gulosos, comiam o que lhes dessem e tingiam os muros da cidade das cores de sua necessidades fisiológicas, acrescentando mais um tom cinza à cinzenta Londres.

Mendigos, lixo, sujeira, empurra-empurra, lanchinhos caros, trem e ônibus fedidos... Shakespeare... muitos ingleses torciam o nariz ao ouvir falar dele, como torcem vários brasileiros ao ouvir o nome José de Alencar. Será que somos, então, todos iguais? Será que na verdade, o Brasil é um lugar como outro qualquer, e qualquer lugar seria igual a Inglaterra? Fernanda sentiu-se limitada e envergonhada. Pensou na sua prima que àquela hora deveria estar se aprontando para dar uma voltinha na praça, vestindo uma roupa nova. Fernanda sentou-se nas escadas da Galeria Nacional, olhou para suas mãos, ao invés de olhar para frente, e sentiu uma saudade danada, tanto da prima quanto da novela das oito.

ESTE CONTO FAZ PARTE DO LIVRO "DE BABÁ À PATROA" E ESTA DISPONÍVEL NO clubedeautores.com.br

Nara Vidal
Enviado por Nara Vidal em 24/04/2010
Código do texto: T2216114
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