CINCO MINUTOS

[...] Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas uma vez chamado com doçura e autoridade ele vai... (Clarice Lispector)

Uma vida a dois, constituída por interesses comuns: cotidiano, trabalho, filhos, divisão de tarefas e despesas financeiras. Foram minutos de percepção depois de dois anos e meio de convivência juntos. De repente o encanto se quebrou.

Ela caminhava a tarde no intervalo do almoço, havia trabalhado o dia inteiro e decidiu não almoçar para observar o resto do dia que não findara. Ele havia ligado a vinte minutos avisando um possível atraso, já que havia marcado de jantarem juntos às oito, depois de assistirem a uma peça de teatro prestes a sair de cartaz. Os planos mudaram, ela teria que adaptar seu tempo livre para atividades individuais: ao menos isso sem a companhia dele.

Mês de março chuvoso na cidade litorânea, as ruas em tons de cinza, muitas pessoas agasalhadas e alguns banhistas desfilando beira-mar. Suspiro e água-de-coco, direção... um garoto quase bate no capô do carro, desvia. Volta a observar a existência, um homem... ela se atenta, franze a testa – Será!? Num lapso, decide dar marcha-ré, quase atropela um ciclista, é censurada por motoristas acionando as buzinas incessantemente. Freia e desce pelo calçadão em trajes formais para o ambiente. Segue determinada até o moço simpático, papeando com algumas garotas num quiosque. Ele não a vê, está com roupas de banho e compenetrado na conversa.

- É mesmo você!?

- Vera!?

- Que bom te ver. O que faz aqui?

- Tava...

- Um minuto!

Ele se assusta ao vê-la em sua frente, enquanto mesmo receptível e alegre, ela tenta buscar a completude nostálgica do momento. A surpresa lhe causa descompostura frente às pessoas com quem conversava. Ele não responde de imediato, mas logo depois lhe pergunta as horas. Ela responde sem olhar o relógio e ele questiona o porquê de sua presença num lugar tão hostil. Suas respostas são sempre objetivas e demonstram seu comportamento pragmático. Por uns instantes ele se mostra ameaçado até tentar ludibriá-la.

- Coincidência encontrá-lo aqui!

- Estou surpreso de vê-la aqui também.

O silêncio os contempla até ele se notar um tanto boçal. Despede-se das amigas e se concentra exclusivamente nela, que responde com riso descomprometido se esquecendo precisar de uma palavra, ou melhor, o nome. Diz estar em horário de almoço, almejando aproveitar o tempo curto que lhe resta. Ele sorri e pergunta mais sobre a vida. Pronto! Ela está liberada para desmanchar o comportamento tenaz imposto. Estão à vontade para descarrilar assuntos despretensiosos com agrado.

- Tá bonita!

- Obrigada, você continua como sempre!

- Quer dizer que ainda sou atraente?

Ela sorri:

- Convencido e pretensioso...

O telefone toca. – Só um minuto!

Logo se vê que o horário de almoço expirou. O que resta então é ligar de volta à empresa para desmarcar os compromissos do resto da tarde e aproveitar além do que pretendia. Ele concorda e admira mais a mulher a sua frente. Já estão familiarizados, experimentando o descompromissado tempo que os une. Caminham em direção ao nada em busca de um tempo deixado para trás, que os fizera falta, já que seus olhos reluzem a luz da satisfação espelhada por ambos. Durante a troca de lembranças de um passado tão presente entre eles, a boca, o contorno dos olhos, os orifícios da pele e do nariz provoca catarse. O semblante se move com a delicadeza de uma alegria de sonoridade harmônica cheia de delicadeza. Inspira o ar para os pulmões soltando-o levemente como a imortalizar os segundos que se vão, explicitando apenas a certeza do reencontro.

- ...Quando você sabe o quanto vale três minutos na vida escreve um romance imortalizando o instante, assim como José de Alencar, senão nos perdemos na imensidão da certeza, o maior anseio de um homem, o sentido.

- Se lembra desse livro? De quando te emprestei pra você aprender a gostar de literatura. Nossa!

- Às vezes ainda leio... não todo, claro! Algumas partes.

- É, você nunca devolveu.

- Você também sumiu.

- É... mas, não sumi, me mudei de colégio. Só isso.

- Depois se mudou do bairro...

Finalmente ela encontra o carro. Abre a porta sem vontade de entrar. Fica ali parada, segurando-a e observa a sua volta, fixando o olhar novamente no amigo.

- Você acha mesmo que o maior anseio de um homem seja o sentido?

- Um minutinho.

Ele olha para ela e tira o isqueiro do bolso, acende o cigarro e traga. De forma religiosa o saboreia em sua totalidade: uma tragada de mestre, o ápice de sua necessidade.

- Então... não só de um homem quanto de muitas mulheres também.

Ele sorri, deixa o rosto folgado fechando os olhos delicadamente. Ela confere o relógio:

- Nossa! Cinco e quarenta e quatro. O Juca ficou de ligar às quatro e meia... – vai entrando com pressa no carro quando o vê com semblante entristecido –, tá indo pra algum lugar? Quer carona?

- Não, obrigado!

- Que isso? Fui grossa com você. Entre, vamos. Te levo!

Ele decide entrar, já sem o ânimo estimulado anteriormente. O telefone dela toca, depois da partida em plena avenida.

– Espera um minuto? - Atende tímida, afirmando o que lhe é proposto do outro lado.

Saem em dissonância, filosoficamente assumem um para o outro, identidades, além do bem e do mal, intocáveis, de forma vaidosa, ensinando o silêncio para a audição lisa de suas almas, que já não comportam mais o desejo no defloro do encontro. Agora mais ricos de si mesmos, assim observava Nietzsche sobre suas escolhas e experiências pessoais, tão distantes de um beijo, quisera comprometidos pelo sopro do vento, atravessando a janela do carro com poucos centímetros aberta. O que dizer deste desfecho ou fenda quando seu olhar decaído, ainda ao telefone, exprime frágil sensação de perigo, emergida numa esperança litigiosa. Estivera renovada ainda a pouco, podendo ser velhas as vontades sob a ótica de novas observações.

- Tá bem, estarei em casa em meia hora! - Desliga o telefone, não consegue olhá-lo. Apenas dirige o veículo testemunhando o horizonte de pessoas e carros num frenético ir e vir sucessivo.

Ele, o pensamento contaminado pelas idéias da hora, recita para si, boca cerrada olhos entreabertos, “Parti hoje para Petrópolis, sem previnir-te, e coloquei entre nós o espaço de vinte e quatro horas e uma distância de muitas léguas. Pensava então que teria sido mais prudente esperar o dia seguinte e fazer uma viagem breve e rápida, do que sujeitar-me a mil contratempos e mil embaraços, que no fim de contas nada adiantavam”.

- Algum problema?

- Não, nada...

O exterior visto pela janela tem mais atrativos.

- Então seu marido se chama Juca?

- Ah, desculpa, eu... sim. Eu me casei, mas... Como é mesmo o seu...? – Logo em frente o sinal vermelho. O tempo e sua vertiginosa propriedade sobre todos os homens pensantes no mundo civilizado.

Ele responde pelos lapsos, sentidos ambíguos de conotação difusa, emergência de coragem ou consolidação da distância nesta hora apenas psicológica, como fora aplicada nos dias em que não permitiram ser do outro o espelho testemunhando quedas e rompantes, fios brancos, traços sob os olhos e a expressão do cançaso que atesta. Ele, mais bem interagido consigo, olhos abertos, porém emudecido retoma seu canto: “entusiasta da liberdade, não posso admitir de modo algum que um homem se escravize ao seu relógio e regule as suas ações pelo movimento de uma pequena agulha de aço ou pelas oscilações de uma pêndula”.

O sinal abre:

- Por que você tá tão calado?

- Eu?

- É.

Quando ela permite olhá-lo nos olhos, outra vez o telefone desperta. Encosta o carro:

- Me dá só mais um minuto!

- Olha - aponta com o dedo -, já é o meu ponto. Obrigado! Enquanto ele desce, sem poder despedir-se, ela ainda se perde na busca pela codificação que acredita ser a parte de ligação entre o seu consciente. Ele se distancia cada vez mais, segundo a segundo, na medida em que a chamada polifônica se intensifica, pois finda a areia escoando no interior da ampulheta, gritando decisão.

- “Alô!?”