De Pernas pro Ar

- Rápido! Coloca o cara na maca e corre pro Pronto Socorro!!!

O nauseabundo cheiro de hospital disfarçava-se entre os gritos de pânico das famílias que suplicavam atendimento. Deveria sentir-me importante por cortar a infinita fila de crianças de colo anêmicas, agarradas em ursinhos gastos, e idosas com tosse rasgada. Mas algo estava errado. Além de não conseguir sentir as pernas, não lembrava dos momentos que antecederam o berro da ambulância. Nem mesmo era capaz de distinguir as faces que me conduziam naquele labiríntico corredor gelado. Mas preferia confiar no deslize da maca enquanto contava as luzes no teto, antigo hábito de infância.

- Qual é o caso?

- Atropelamento doutor. Escoriações faciais, fratura no braço esquerdo e membros inferiores sem reflexo.

Sempre fui seduzido pelas palavras difíceis, capazes de vangloriar termos toscos em sublimes desfechos poéticos, mas naquele momento, sentindo cada vez mais as dores, somente desejava clareza. As veias eram perfuradas sem que pudesse contestar o desconforto. O corpo sorvia outra unidade de sangue com agonizante sede, enquanto os corredores pálidos mapeavam o confuso itinerário. Percebi soluços de choro, mas preferi não saber de onde vinham.

- Acredito que o paciente tenha lesado a espinha doutor.

A troca de informações, enquanto abaixavam minhas pálpebras e direcionavam feixes de luz em minhas pupilas, elevava minha importância. Lembrava de minha infância desiludida, ausente de amores e alegrias e imersa em assovios solitários. Toda aquela atenção mostrava-se incompatível com as ausências vividas. As doenças ocasionais eram curadas com receitas caseiras que transformavam qualquer erva, misturada em água, em remédio.

- Os danos na espinha são irremediáveis. Cuidaremos das demais fraturas, mas a paralisia é permanente. Não se sinta culpada porque as ruas são mal sinalizadas e, caso não o tivesse trazido a tempo, nem vivo ele estaria.

Desviei a atenção das luzes e percebi sua presença. As lágrimas escorriam pelo rosto claro e desmanchavam no desenho de seus lábios. Nem mesmo o choro seria capaz de machucar tanta beleza. Ao perceber minha atenção colocou levemente a mão quente sobre a minha, sem se importar com o sangue colado aos meus dedos e desabafou com sedutora rouquidão:

- Você não vai mais andar... Me desculpe...

Tentei movimentar a perna esquerda e confirmei a sentença. Sua mão apertava a minha com mais força. Lamentei o acidente e acompanhei seu rosto molhado aproximar-se do meu ombro. Quis beijá-la, mas, evidentemente, essa idéia mostrava-se inoportuna. Esperei o deslize de mais uma lágrima e a desculpei com um sorriso.

Senti-me aliviado por não poder correr daqueles olhos.

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 24/08/2006
Reeditado em 21/06/2007
Código do texto: T224105
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