Tristeza

Houve um tempo que pensei que a vida era para se chegar a algum lugar e costumava traçar objetivos para o futuro. Caminhei até o meu prédio e fiz o trajeto todo olhando para cima, no fundo não queria estar ali, tudo me sufocava, me diminuía a ponto de pensar que não faria diferença entrar ou não. Poderia fazer como Bebeto, um personagem que admiro daquele filme “Matou a família e foi ao cinema”. Mas a real era subir uma dúzia de lances de escada para ouvir que as coisas não vão bem, que levara pouco dinheiro pra casa, que as crianças precisam disso ou daquilo. Ou seria um sorrir amarelado para parecer que gosto das coisas enquanto acho tudo uma merda. Depois do primeiro lance de escadas quis sentar, me aquietei num cantinho para não atrapalhar quem quisesse usar a escada de incêndio e confesso-me confuso ainda, sob o efeito da anfetamina, do álcool e de dois baseados. Sentia-me um lixo por ter colocado Aline naquela situação, ela era tão linda e tão leve quando a conheci e veja só no que a transformei, em carbono. Transformava tudo o que tocava naquela mesma massa pastosa e fétida.

Eu, o adorado filho, o exemplar marido, não tinha a solução e aquela tristeza me corroía. Poderia esperar por horas ali, mas quando me atrasava precisava explicar e tecer largos comentários acerca do atraso. Respirei fundo para enfrentar o segundo lance de escadas e me ergui com certa dificuldade, poderia ter pego o elevador, abrir uma exceção, afinal a escada era para ajudar no condicionamento físico e não vejo para que cuidar do corpo se minha cabeça está um caos. No terceiro lance senti uma pequena vertigem e mais uma vez me sentei.

No início do quinto lance o celular toca.

Sim, Aline! Estou aqui no prédio, em minutos estarei aí. Não, não passei na padaria. Não, já já chego aí a gente se fala!

E ela ainda consegue se lembrar do pão e do leite, sou mesmo um filho da puta desgraçado, poderia voltar e comprar o que ela quer, mas não vou fazer isso, apenas pelo fardo de mais uma pequena insatisfação. Mais um lance e a cada passo soa como se quisessem me fazer sentir um estranho dentro da casa que sustento. Não tenho liberdade de colocar as pernas para cima e descansar que ela vem com aquele papo de sujar o sofá. Se meus filhos choram é por que querem me expulsar dali, mas não têm tamanho para isso. Já Aline não tem coragem, se eu fosse ela no mínimo não me deixaria entrar nunca mais.

Bem que eu poderia fazer como Macunaíma e me vangloriar por caçar dois veados de uma só vez, mas assumo de uma vez que são apenas dois míseros ratos, contar vantagem de ter uma bela mulher, dois filhos e um apartamento no subúrbio da zona sul não é bem o resumo do futuro promissor que esperava.

No sétimo lance de escadas a verdade e a dissimulação tomavam-me o fôlego. Aline fora minha por um tempo, um ano, talvez um pouco mais. De algum modo vivi aquilo tudo tão intensamente que ainda ecoa-me como verdade e por mais de uma década estamos presos nesse teatro de horrores que nos afasta mais a cada dia. E essa farsa já durava tempo demais. Que idiota que eu sou, mais que isso, um covarde, se tivesse uma doença terminal e soubesse com a máxima certeza que tudo isso era minha última experiência, já teria mandado tudo às favas. E estaria sozinho trancafiado numa quitinete fumando e bebendo até me acabar, mas é isso, sou um grandessíssimo de um covarde.

Poderia estar no oitavo céu, mas se o inferno são os outros, como bem disse Sartre, e eu carregava a pedra do inferno dos outros, um Sísifo mudo. O porteiro descia a escada e fugi dele a semana inteira, por estar com o condomínio atrasado e devendo duas visitas dele por conta do encanamento da pia. Já havia recebido duas vezes a cobrança dele dentro de minha caixa de correio e ele mal me olhou, se Aline tivesse mais algum problema não poderia contar com ele.

Mais uma vez olhei para cima, temos esse costume de que quando tudo nos falta rogamos ao desconhecido e já cansei de acreditar. Olhei os lances de escada acima, porque morar no décimo segundo andar se não creio em Deus, pra que ir pela escada se não sou dado a sacrifícios?

Terminei de subir correndo os últimos lances que faltavam e abri a porta da entrada de serviço, o cheiro do jantar me recepcionou e ela estava de costas, dei aquele beijo estéril, o rotineiro e levei a mão ao bolso.

Trouxe chocolate para as crianças, vou tomar um banho. Ela mal sorriu e eu saí da cozinha, as crianças deviam estar dormindo, há tempos não sentia a casa tão silenciosa.

Quando entrei no banheiro fiquei com medo de Aline, ela com aquela faca na mão remetia-me à cena do filme “Psicose”, de Alfred Hitchcock, queria ficar de pé, mas a tontura veio-me num solavanco como as facadas na personagem, me agarrei às cortinas e fui descendo vagarosamente recostado na parede e os grampos se desprendendo tal qual a cena cinematográfica. O silêncio ainda ecoava lá fora, ela poderia ter envenenado as crianças e esperava apenas um deslize meu para fazer o mesmo comigo.

Sabia que aquele sentimento era por conta da anfetamina com o álcool, mas a sensação era de medo e prazer, o chão frio me trazia à realidade, enquanto a água morna em minha cara convidava para mais uma paranoia, como poderia ter me esquecido de como é bom dar de cara comigo mesmo, entregue e absorto, jogado dentro de um banheiro trancado pelo lado de dentro. Ali era eu e se quisesse me encarar era só olhar pro espelho embaçado e me culpar por ser a escória humana, mas sem confrontamentos obtusos, sem frases mal interpretadas ou a tentativa de me fazer entender. O que brotava era o que escondia de mim, mas ignorar por opção era melhor que confrontar com o que se desconhece por completo.

Não sei ao certo quanto tempo se passou, mas o estado de alívio era intenso, a boca aberta, a respiração quase inexistente, a água morna desenhavam o cenário do gênesis, a sensação de descobrir coisas tolas misturado ao desejo de me adaptar ao desprezo. Nu não queria interagir e tentara viver como mero espectador, como se pudesse recordar o útero materno e as vantagens do coexistir e ser amado incondicionalmente, como se pudesse reescrever as falas das escolhas fadadas ao sofrimento, mas não podia, Aline batia na porta.

"Flávio, o jantar está pronto, não demore ou a comida esfria!"

Hei de ser forte e resistir a tudo! As contendas não são maiores que os soldados, quantas vezes ouvi meu pai dizendo isso e quantas vezes tentei acreditar nele, mas não consigo! Se não fosse a vontade, pai! Se não fosse a vontade, pois é a vontade que nos faz agir de impulso, que nos faz amar, querer tanto até cegar. Não medi as consequências e a confusão, a exaltação e o medo nascem desse amar desmedido.

Estava limpo como novo, será que existiria um modo de me sentir menos culpado?

Se houvesse um modo de poder escolher viver inocente, uma escolha para a cegueira branca como bem disse Saramago. Talvez fosse mais fácil sentar à mesa com ela se eu desconhecesse a culpa, se me livrasse de toda a carga das escolhas equivocadas e me entregasse nu e limpo como da primeira vez, ela voltasse a me amar. E quem sabe ainda me ame, olha-me tão gentil, um sorriso tremido, meio nervoso, não sei definir. Poderia ser temor ou ânsia quem sabe, mas não era ódio e isso poderia ser um bom recomeço.

Perguntei onde estavam as crianças, mas ela distraída com a salada pareceu não me ouvir, insisti.

Estão com a mamãe, precisamos conversar.

Será que finalmente ponderaríamos civilizadamente sobre nossa situação, era uma surpresa ela tomar a frente do diálogo e se desprender da rotina de seus afazeres.

Por isso te liguei mais cedo e perguntei sobre a padaria, pois não precisaria mesmo que passasse por lá.

Sim, até o tom de sua voz era diferente, parecia segura de si e era por aquela mulher que eu me apaixonara, os olhos tinham ainda uma expressão cinza, como se nublados, mas mesmo com a capa do cotidiano ela ainda era atraente. Trouxe a salada em uma mão e uma garrafa de vinho na outra, teve mais cuidado do que o de costume com o jantar. Dispôs as taças, a mesa já estava posta. Serviu-me a salada, trocamos olhares, nada falamos e parecia que via nela o sorriso amarelo que por décadas esbocei.

Os medalhões estavam delicadamente temperados com molho madeira, bem como eu apreciava, vinho tinto e Aline em silêncio, como de costume.

Elogiei a comida, disse que escolhera bem o vinho e ela continuou em silêncio. E confesso que aquela cena estava mais para filme romântico dos anos quarenta, do que para episódio de CSI.

Aline continuou deixando minha taça cheia e em certos momentos senti-me um glutão servido por minha ninfa. Na distração do saciar não havia percebido a organização e limpeza da casa, como há muito tempo não via, sem brinquedos ou material escolar espalhados sobre os móveis e pelo chão. Mas ali não era lugar do jogo de malas, sempre que precisava de uma delas estavam empoeiradas sobre o guarda-roupas.

Quase me engasguei com o vinho, senti um soco na boca do estômago e veio-me a frase de meu pai, “cuidado com o que deseja, pois pode se tornar realidade!”

Não disse nada e até tentei disfarçar meu susto, ela iria embora e eu não estava mais tão certo de não querer mais a vida que tinha. Poderia me jogar aos seus pés e implorar que ficasse, me revisitar em falsas promessas ou talvez confessar que ainda a amava, mas a conhecia o suficiente para saber que nada daquilo bastaria.

Encarou-me e senti minha alma chorar, desejei me ajoelhar, admitir que a amava e demonstrar que embora covarde eu fosse generoso, que poderia exigir qualquer coisa que fosse que tentaria me adaptar aos desejos mais ternos dela. Muito“Love Story”, não funcionaria!

Enfim, ela se foi, sem me pedir nada, sem maiores explicações e me calei, pois como tenho reforçado, sou mesmo um covarde, deixo meu destino nas escolhas de terceiros e quando não me sobram alternativas senão escolher encolho-me.

Levou meus filhos e duas malas.

Naquela noite bebi toda adega e nas semanas que se seguiram não fui trabalhar, bem mesmo o que sempre sonhei pra minha vida, mas com alguns metros quadrados a mais.

Larissa Marques
Enviado por Larissa Marques em 14/05/2010
Reeditado em 12/06/2017
Código do texto: T2256995
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