(SEM TÍTULO)

Estou cansado de mim mesmo. É difícil entender isso, mas acho que devo parar com essa mania de falar comigo mesmo, embora falar ajude-me a clarear os pensamentos. Enfim, resto-me só. Eu e as pombas que vejo pela janela, duas delas. Ao menos elas têm uma a outra, imagino, e esse meu vazio não se cura com conversas de pombo. Talvez a linguagem que me reste quando falo assim ao que puder me escutar seja uma linguagem primitiva, sons que só eu entenderia. Mas logo me canso e tudo que me restam são as pombas, a janela e eu mesmo. Imagino-me ali sobre os fios, tecendo horas de conversa resumidas a [barulho de pomba]. É, são quase seis da tarde, hora em que as pombas começam a procurar abrigo quente para dormir ou fazer o que quer que fazem as pombas depois das seis. Eu, com sorte ainda tenho uma poltrona e um colchão de molas que machuca as costas se me deitar no meio. Durmo de lado, evitando as molas traiçoeiras, mas vez ou outra me perco dos sonhos espetado em uma das molas. Talvez um dia tire as molas dali e o furo que se dane, antes o furo do que um rasgo nas costelas. Como doem as costelas quando as molas me alcançam em sono profundo. Deitado assim, à luz do dia que resta e evitando as molas sorrateiras me lembro que esqueci a porta da frente aberta. Talvez esse frio dolorido venha da porta, talvez não, talvez seja da janela, mas daí não posso fechá-la. Primeiro porque não quero e segundo porque está emperrada. Acho que já li todos os livros da cabeceira, das prateleiras e os que meu vizinho me deixou ali num canto empoeirado. Alguém precisa dar um jeito naquele canto, está impregnado de teias com insetos deixados à morte e esquecidos pela aranha que deve ter tecido a teia. Imagino onde estaria a aranha uma hora dessas, tenho pavor dela e de outras aranhas maiores. Imagine só, que meu vizinho deixou bem ali aqueles livros numa espécie de armadilhas. Ele deve saber que morro de medo de qualquer coisa com mais de quatro patas. Talvez então eu não tenha lido nenhum dos livros naquela sacola marrom, não li nem o que está escrito na sacola. A luz também não ajuda muito nessas horas, amanhã quem sabe. Volto a atenção para a janela e os pombos já partiram para outro fio ou talvez para alguma árvore. Agora me ocorre que não vejo os pombos nas árvores aqui perto, só nos fios. As árvores são cheias e talvez não possam se ver escondidos ali mesmo. Talvez estejam nas árvores, afinal, mas que sei eu da vida dos pombos? Sei da minha e já me enchi dela. Sei que são mais de seis horas porque já escureceu por completo. Como escurece rápido por aqui. Mas penso de novo que talvez seja só aqui, porque nas lembranças que tenho de outros lugares acho que escurecia mais cedo. Também lembro dos fios estarem mais distantes do chão do que agora, mas isso pode ser porque estou deitado na cama e encolhido no canto da parede. Imagino se meu vizinho vai passar por aqui hoje, faz tempo que não nos falamos. Vou dizer a ele que li todos os livros, vou dizer que tenho medo de aranhas e ele vai rir. Vai rir porque ele sabe, mas não me lembro de ter contado. Vou dizer a ele que a rua está meio parada e ele certamente me dirá o motivo. Meu vizinho sabe de tudo. Outro dia ele me disse que sabia que eu observava os pombos o dia inteiro, mas da minha janela ele não consegue me ver. Perguntei a ele como ele sabe e ele me disse que os pombos lhe disseram, que estão cada vez mais incomodados com meu hábito de espiá-los. Eu disse que era mentira, que os pombos não falam e nem escutam. Disse a ele que eles só conversam entre eles e que a língua deles é mais simples e os sons são quase sempre os mesmos. Que se ele falasse mesmo a língua dos pombos ele não saberia diferenciar um cumprimento de um xingamento. Eu disse a ele que se os pombos se incomodassem de verdade, já teriam se mudado de lugar, estariam talvez no fio do outro lado da rua. Os pombos gostam da minha companhia, por mais que não me entendam. Acho que outro dia entendi o que um deles disse ao outro. Eu estava falando com um deles e eles estavam conversando um com o outro, daí um deles disse para o outro que eu falava muito, que eu devia aprender a língua dos pombos. Daí eu ri e ele também riu. Mas não posso provar isso porque não havia ninguém aqui. Nunca há ninguém aqui. Estou esperando meu vizinho aparecer para contar essa história para ele, acho que ele vai gostar. Ele é a única pessoa com quem eu converso. Outro dia ele me perguntou porque eu era tão fechado e eu disse que tinha nascido assim. Disse que quando criança, as outras crianças tiravam sarro de mim, mas eu nunca me importei. Minha mãe sempre me dizia que se alguém mexesse comigo era para eu ficar quieto que eles iam parar. Mas os meninos da minha escola não paravam, eles queriam me ouvir de qualquer jeito, daí começavam a me chutar e me bater. Daí eu nem chorava, segurava bem forte e saía correndo. Só largava o ar quando eu chegava em casa e daí gritava e chorava e minha mãe me pegava no colo dizendo que tudo tinha passado. Eu ficava quieto, quieto e ela ia brigar com a mãe dos meninos. Minha mãe sempre cuidou muito bem de mim. Ela dizia que eu era um menino muito especial, que não importava o que as pessoas dissessem, eu era especial e elas não podiam fazer nada contra isso. Sinto falta da minha mãe, ela me faria companhia agora. Mas acho que só sinto falta dela, eu nem me lembro direito do resto da família, minha mãe não ia muito às festas da família, só de vez em quando que eles vinham em casa e eu ficava no quarto assisindo tevê. No meu quarto eu tinha um aquário e passava muito tempo olhando para ele também. Aprendi a falar a língua dos peixe muito rápido. Aprender a língua dos animais é fácil, mas demora. Você tem que olhar durante muito tempo, olhar e olhar, depois você fala na sua língua mesmo e olha, depois você fala e eles respondem na língua deles. Depois de muito tempo você os ouve falando como se eles falassem a sua língua. Quando vai ver já está falando a língua dos animais. Falo a língua dos peixes, dos gatos, dos canários e estou quase aprendendo a língua dos pombos. Os pombos, acho que não voltam hoje, mas não tem problema porque meu vizinho deve aparecer uma hora e eu vou contar para li todos os livros dele, matei uma aranha com o livro mais pesado e se ele não acreditar, pode perguntar aos pombos que vão confirmar tudo.

Ricardo R
Enviado por Ricardo R em 15/05/2010
Reeditado em 15/05/2010
Código do texto: T2258820
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