Um domingo nas trevas

Moça nova, adolescência efervescente. Cabeça desvairada. Ana Carolina, a Carol para os mais íntimos, se apresenta sempre com o nome; o pseudônimo raramente era mencionado. Afora as inquietações da idade, portava bons predicados: estudiosa, inteligente... E muito bonita. Aguçava olhares por onde passava. Mas algo a incomodava sobremaneira. Podia aos olhos alheios parecer perda de tempo tudo aquilo, contudo, o que Carol sentia era para ela verdadeiro incômodo. Jamais se importou com o que outros pensavam a seu respeito ou de seus ideais; fantasias – não importava a nomenclatura - mas o mal-estar.

- Carol trate de arrumar o seu quarto; vou ao supermercado e quando chegar quero... – esbravejou a mãe, como fazia em todos os finais de semana.

O sol no céu limpo de inverno já lançava fracos raios. Era sábado. Mas para dona Beatriz não fazia nenhuma diferença. Afinal tinha os afazeres domésticos, embora os detestasse. A propósito, também detestava o substantivo dona; não era velha, apenas não gozava mais de tanta mocidade. Contudo, no trabalho substituíam o substantivo constrangedor por outro: doutora. Advogava para uma indústria de eletrodomésticos. Restava-lhe, portanto, pouco tempo para se dedicar à única filha, Carol, que tinha umas ideologias acerca de Deus, religião - meio excêntricas. Eram preocupantes as indagações que Carol travava consigo e, às vezes, com os outros.

- Carol já arrumou o que eu te pedi? – Pergunta a mãe – empunhando duas sacolas com os petrechos para a lasanha.

- Está quase, mãe!

- Onde está seu pai, Carol? Desta vez Beatriz já entona um timbre mais brando.

- Foi encontrar-se com amigos na choperia. Mas disse que não irá demorar muito; ia tomar uns chopes, jogar umas conversas fora e... – Respondeu Carol com presteza, enquanto terminava de arrumar a bagunça em seu quarto.

Terminou e foi estar com a mãe que já preparava a lasanha; o forno se aquecendo.

- Mãe, com relação à existência de Deus, sua influência em nossas vidas, embora eu saiba que você seja completamente desligada, tem algum conceito formado?

- Puxa, Carol! Você tem se demonstrado muito incomodada com essas questões de ordem religiosa; mas meu conceito é plagiado da maioria das pessoas: Deus ser supremo, luz que ilumina os comandados, que enviou há dois mil anos o seu filho Jesus para que espalhasse a fé e a justiça entre os homens. Não sei muita coisa, aliás, não me ocupo tanto em analisar esses enigmas. Tenho ocupações demais e basta que eu tenha fé...

Carol com os olhos fixos num canto do teto da cozinha retira a perna que estava embaixo de suas nádegas e sobre a cadeira. Num gesto rápido, desvia o olhar e fita a mãe por algum tempo em silêncio. Beatriz acostumada com aquelas maneiras de sentar da filha, as ausências com características autistas – já tinha levado Carol ao médico e não era autista – voltou-se para filha, fitando-a também. Quem e quando quebraria o silêncio?

A mãe não resistiu e o quebrou.

- Como está a escola, Carol?

- Está bem mãe! Afora aquele chato do Marcelo está tudo ótimo.

- Carol você não simpatiza com o Marcelo porque ele é exigente. Além de discorrer bem sobre a disciplina, as provas são de tirar o coro. Mas é um bom rapaz, excelente profissional.

- Tudo bem mãe! Mas eu não gosto dele e pronto! Continua sendo para mim um chato. Pedante.

- Vamos esquecer o Marcelo, Carol! E você e Flávio como estão?

- Quando dá vontade a gente se encontra. Mas estou evitando-o; ele não me entende; a minha busca constante por respostas... Não sei se a gente vai se suportar mais por tanto tempo.

Beatriz põe a lasanha no forno. Abre o freezer pega uma latinha de cerveja e vai para a sala ouvir umas músicas. Carol vai para o quarto acessar seus e-mails.

Beatriz busca outras latinhas e viaja nas músicas de Simon And Garfunkel, faz uma retrospectiva em sua juventude: - os amores, escolas, viagens. Nesse ínterim, Armando chega e interrompe-a:

- Bom gosto, querida!

Beija-lhe a fronte e vai à cozinha pegar uma latinha de cerveja e volta para fazer–lhe companhia, interrompendo de vez seus devaneios. Senta-se ao seu lado e pergunta-lhe:

- Onde está Carol?

- Está no quarto acessando seus e-mails! Responde Beatriz com os olhos semicerrados.

- Estou preocupado com as indagações de Carol, Beatriz! Afinal, ela tem apenas 15 anos e não deveria, por lógica, estar preocupada com isso. Assunto meio fora de sua idade – Deus, existência, de onde vim para onde vou...

- Eu também estou Armando! Preciso aproximar-me mais dela; tentar satisfazer seus anseios, dúvidas. Mostrar-lhe que a vida é para ser vivida e não enfunar-se numa verdade imaginária.

- Você tem razão Beatriz. Acho, inclusive, que essa busca de Carol é por estarmos sempre ausentes. Nunca temos tempo pra ela. Ela criou um mundo dela; escola de manhã; à tarde e à noite: o computador. Nem Flávio está sendo tão importante para ela. Afastou-se das amigas. É preocupante.

Beatriz abre os olhos e fita os de Armando, franzindo a testa. Levanta-se e volta à cozinha, pega duas latinhas de cerveja e retorna à sala – precisa aprofundar o diálogo -, entrega uma a Armando e assenta-se.

- Armando! – diz após tomar um gole.

- Sim, Beatriz!

- No início desta semana, mais precisamente na terça-feira, esteve aqui em casa um rapaz à procura de Carol. Eu nunca o vi e pareceu-me estranho à primeira vista; não gostei. Carol não quis conversar com ele aqui, preferiu descer para o hall.

- Mas quando Carol voltou você não indagou dela de quem se tratava?

- Sim, Armando, claro que perguntei. Ela me disse que se tratava de um amigo, esquivando-se em detalhar.

- O que fez você sentir que não havia gostado do rapaz?

- Senti pelo olhar do rapaz, Armando. Conversamos por pouco mais de cinco minutos e em momento algum ele permitiu que eu visse a cor de seus olhos. Não era timidez. Convivo com muitas pessoas tímidas; e a maneira destas desviarem o olhar é muito diferente de alguém que está escondendo alguma coisa.

- Beatriz! Não seria talvez uma nova paquera de Carol?

- Não. Estou convicta que não. Conheço alguns gostos de minha filha e isso seria quase impossível. O rapaz é bem mais velho – 30 anos, creio. Há alguma coisa por trás disso, Armando. Precisamos monitorá-los...

A manhã daquele domingo prometia que todo o dia seria agradável; o céu completamente azul, sem nuvens, o sol emitindo raios brandos; nas ruas as pessoas caminhavam com uma alegria invejável, crianças brincando por toda parte, idosos indo para as praças jogar cartas – habitualidade nos dias de céu limpo. Armando foi à padaria comprar mais cervejas, refrigerantes e o jornal, enquanto aguarda Carol acordar - precisa conversar com ela.

Na volta de Armando, fugindo aos hábitos, Carol já havia acordado. Estava tomando banho. “Estaria se preparando para sair? – pensou o pai.” Afinal, era incomum Carol acordar aos domingos naquele horário – sempre varava noite na internet.

Armando aguardou pacientemente a saída de Carol do banho.

- Oi! Bom dia, filha!

- Bom dia, pai!

- O que deu em você, nunca acorda tão cedo?

- Na verdade, pai, eu e umas amigas iremos passar o domingo num sítio.

- Mas por que não nos comunicou Carol?

- Combinamos à noite e você e mamãe já haviam dormido. – não quis acordá-los.

- Eu levo você até o sítio, filha!

- Não há necessidade pai. Combinamos ir na mesma condução. A mãe de Gisele tem carro utilitário e se propôs a levar-nos...

- Mas quem é Gisele, Carol?

- Ela é novata na escola pai! Você e mamãe não a conhecem.

Beatriz ouvia a conversa da cozinha, enquanto preparava o desjejum.

- Mas Carol você nunca se interessou por sair com pessoas que não as conhecesse? – indagou a mãe com metade do corpo na cozinha e outra para sala de jantar.

- Mãe entenda: - Gisele não é estranha pra mim, pode ser para vocês. Temos um bom relacionamento na escola e até trabalho já fizemos juntas.

- Qual é o telefone de Gisele?

- Não o tenho ainda em minha agenda, mas prometo-lhe que a pedirei.

Armando foi para a cozinha e Carol para o quarto se trocar.

- Beatriz! Precisamos montar uma estratégia para vigiá-la. Logo que ela pegar o ônibus, iremos atrás.

- Tem razão Armando! Faremos isso...

Carol não quis comer nada. Tentava, aparentemente, ludibriar com um falso sorriso. Armando prendeu-a com conversa, tempo suficiente para que Beatriz se trocasse – fingindo que fosse ao supermercado e depois tomar um chopinho – e desta vez gostaria que Beatriz o acompanhasse.

- Como vamos ao supermercado, podemos deixar você no ponto do ônibus, Carol. – disse o pai tentando manter um ar de tranquilidade.

- Tudo bem pai. – respondeu prontamente Carol.

Carol desceu do carro, embarcando em seguida no ônibus. Armando como conhecia o trajeto do ônibus, passou por outras ruas até chegar a uns pontos adiante. Carol ainda estava no ônibus – Beatriz pode vê-la. Armando e Beatriz seguiram o ônibus, sempre observando em cada parada. Carol continuava embarcada.

Desembarcou num bairro bem distante. Atentos, Armando e Beatriz, viram quando Carol encaminhou-se para embarcar no outro ônibus. Não era um coletivo urbano. Parecia veículo fretado. Contrariando ao que dissera sobre o veículo utilitário; a mãe de Gisele...

Beatriz e Armando se entreolharam. Voltando a observar Carol que se misturou a uma turma de jovens que trajava roupas iguais; azul-claro. As mulheres de túnica e os homens de bata; somente as calças eram diferentes.

Beatriz vira-se, assustada, para Armando:

- Tem coisa muito estranha acontecendo, Armando! – Note esses jovens vestidos de maneira incomum. O que será isto?

- Receio Beatriz ser alguma seita. Note que são todos com idades equiparadas à de Carol.

Todos embarcaram e o ônibus saiu. Beatriz e Armando o seguiram, mantendo distância para não serem vistos. Saíram do perímetro urbano. Armando reduziu mais a velocidade. Estrada de terra, estreita e, claro, podia ser observados pelo motorista através do retrovisor. Ao longe, Beatriz e Armando viram quando alguém desceu para abrir a porteira para o ônibus. Entraram no sítio; uma casa em estilo moderno, grande. Armando acelerou e adentrou também na mesma propriedade. Escondeu o carro atrás de umas árvores próximas da lagoa e seguiram a pé até a casa.

Armando e Beatriz, através de uma janela conseguiram ver parte do que acontecia no interior da casa. Perplexos, se entreolharam:

- Não estou acreditando no que vejo, Armando! – Beatriz balbuciou quase em prantos.

- Precisamos tirar Carol e acionarmos a polícia. Somos agora responsáveis por todos os jovens envolvidos nessa coisa macabra. – Falou Armando com os lábios trêmulos.

- Sim, Armando! Ligue imediatamente para a polícia. – Ordenou Beatriz apavorada.

Armando correu até o carro apanhou o celular e ligou. Em menos de 20 minutos a polícia estava no local. No interior da casa os jovens seminus, portando lâminas cortavam os pulsos uns dos outros, ritual liderado sob a ilusão de purificação – sangue espalhado por toda parte, gritos. Os lideres foram detidos e os jovens socorridos. Três jovens não tiveram a sorte de chegar ao hospital com vida.

Carol, assustada, é arrastada por Beatriz para fora da casa. Por sorte, somente o pulso esquerdo havia sido cortado. Beatriz tirou a blusa, enrolou-a bem apertada no pulso de Carol e o pai acelerou para o hospital mais próximo.

Em tratamento, Carol prefere esquecer-se daquele sangrento domingo, centrando, agora, sua vida e seus ideais num mundo real.