DIA DE FOLGA

Hoje o dia passou arrastado, moroso, com preguiça; lerdo com gosto de nada. Hoje foi um dia que deveria ser cortado do meu calendário e, preferencialmente, esquecido.

Acordei às 5 da manhã com o rádio da vizinha ligado na “Alvorada Matinal”, no volume máximo. Após o primeiro momento de susto olhei no digital e voltei pro travesseiro. Virei de lado e tentei recuperar o sono bom da madrugada. O calor dos lençóis embalou meu cochilo com fundo musical, nisto toca o telefone: engano. Começo a me aborrecer e decido levantar, são 5:30. Abro as cortinas e vejo um dia pálido, o sol tímido dando bom dia. Fico imaginando ganhar sozinha na loteria (já que é sonho não divido com ninguém) e virar rica. Viajar pelo mundo sem destino e ser aquela mocinha dos romances Sabrina com cabelos longos cor de ouro e olhos atraentemente verdes. Vivendo entre o amor e o perigo em acampamento na África ou pesquisando sobre tribos remanescentes dos Astecas na Colômbia – o pôr-do-sol entre as montanhas formando desenhos indecifráveis no leito do rio Magdalena, fazendo brilhar o peito nu dos nativos de olhar arredio, espalhando seu cheiro sensual e me envolvendo com o fogo dos seus rituais. Vou mais longe como a espiã do Kremlin que se apaixona por sua vítima.

Sonhando, desperto com o caminhão da limpeza pública passando, corro e vou juntar o lixo espalhado pela casa; aproveito e varro a calçada, boto água nas plantas e volto pro quarto com minha realidade de dona de casa. O despertador toca às sete horas; acordo as crianças, faço café, dou comida ao passarinho, pego o jornal, o leite derrama, não tem mais pão, já estou atrasada, a arrumadeira não veio, vou enlouquecer, são 7:25, o cachorro fez xixi no tapete, faltou água, tenho certeza que vou enlouquecer...

Observo minhas rugas no espelho do banheiro e vejo-as enormes. Preciso de uma nova base para esconder olheiras, hoje estão horríveis. Suo calçando minha meia de lycra suave compressão, minha farda está amassada, mas vai assim mesmo, estou atrasada. Pego o fusquinha 1980 e parto veloz, no sinal vejo as manchetes do jornal: “Na madrugada dessa quarta-feira, o soldado... matou a esposa com cinco facadas. Seus filhos pequenos presenciaram...”. Um sentimento de revolta me invade, fazendo lembrar que poderia ter acontecido comigo: “esposa constantemente espancada move ação contra marido esquizofrênico e é morta com três tiros de revólver calibre...”. Graças a mim e a Deus consegui me livrar daquele desgraçado. Sigo com a notícia na cabeça: ”... filhos pequenos são as únicas testemunhas...”. A gloriosa Polícia Militar tem o dever de proteger todos os cidadãos e não transformar homens em animais irracionais, violentos e brutais.

Vejo um guarda de trânsito e tenho vontade de, por ele, começar o extermínio aos militares. Contenho-me e lembro que hoje é quinta-feira, meu dia de folga... Volto para casa de mau humor pensando na gasolina que gastei, no que não dormi e no tempo que perdi. Tenho vontade de gritar, mas vem à mente uma reportagem que vi no dentista sobre a força do pensamento positivo, conto até dez e volto a ser extrovertida e educada.

O tempo está nublado, em frente à minha garagem um caminhão estacionando, procuro o motorista, mas ninguém sabe, ninguém viu. Deixo o carro na rua e entro em casa, na porta um bilhete da Zezé dizendo que vai para São Paulo atrás do namorado (tanto que fiz por aquela zinha e o que recebo é um bilhete em papel de pão).Assim é a vida, entro em casa e vou arrumando a bagunça maior. São 9:30 tenho que ir ao Banco: conta de luz vencida – multa, água, taxa de esgoto (não sei para que pagar isso, a Companhia joga tudo no rio,vem a Prefeitura limpa nas quatro festas do ano, faz propaganda e fica tudo do mesmo jeito. A conta de telefone (não acredito! 139 excedentes e 12 ligações interurbanas!). Será que o dinheiro vai dar? O que está na poupança não tiro, estou juntando para comprar uma televisão nova, a nossa está tão velha que vejo a hora de pifar; ficar sem o jornal nacional, a novela das oito, a copa...

Começa a chover. Chuva fina não molha, só atrapalha. Essa vida é uma porcaria; dinheiro contado, corre-corre, e ainda por cima tenho que ser educada e satisfazer os caprichos daquelas burguesas neuróticas e histéricas do Hotel. Uma cesta de frutas tropicais, perfumar a suíte para a lua de mel, receber os colunistas (todos viados) da capital, inspecionar, subir e descer escadas.Arranjar tempo para perguntar sobre a saúde dos hóspedes vitalícios, escutar conversa de bêbado e manter sempre um ar sorridente. Sinto-me uma perfeita idiota.

A chuva aumenta. Pego as crianças no colégio e vou pensando o que fazer para almoçar, já passa do meio-dia. Em casa, goteiras; abro uma lata de kitute e faço um sanduíche. Chega a hora do cochilo, o olho fecha, mas tenho que enxugar a casa. Divido a tarde fazendo faxina e ensinando a lição. Minha irmã telefonou dizendo que uma vizinha morreu de repente e ela foi pro velório, ficou nervosa e tomou dois ansilives, deu dor de cabeça, dor no estomago, crise de fígado e... Consegui dar uma desculpa e desligar. Fico vendo a noite chegar, a água lavou a cidade que agora se acende: as antenas do monte, os letreiros de néon, uma a uma vão se iluminando as vidas para a noite. Mais um dia se foi e eu não sei para onde. Estou suja de cansaço e poeira, unhas encardidas, cabelo enfeitado de teias de aranha, ombros caídos, triste, feia, velha e só. Desiludida, pronta para acordar cedo e voltar a trabalhar, após este merecido descanso semanal, recuperar forças e esperar mais um dia de folga.

Cristiane - 1994

CrisLima
Enviado por CrisLima em 27/08/2006
Código do texto: T226357