A cama vazia

A cama estava macia, deliciosa. A noite foi das melhores. Esbaldei-me em prazeres; há muito não os sentia tanto. Oportunidade, disposição, qual seria o responsável por não sentir o mesmo em outras noites? Mesmo parceiro, mesma cama, mesmas carnes se tocando – afastados por longo período. Talvez a insobriedade, a ânsia e a saudade juntas tenham protagonizado essa libido efervescente. Ocorrência recente não poderia ser confundida com um prazeroso sonho. Não, não foi nenhum sonho. Estavam ainda à minha frente, espalhados: roupas, cheiro de sexo, copos, música. Menos o ator principal. Ele sumira, como um relâmpago, um vaga-lume que num piscar esquiva-se turvando a visão. Proporcionou-me tudo aquilo, extasiou-me como nunca, e evaporou-se como um gás que se mistura ao oxigênio. Era possível ainda sentir frio e calor, misturados, percorrer-me todo o corpo, provocando ofegante excitação.

Passei lentamente a mão do lado da cama, confiante que houvesse uma surpresa: ele estivesse lá, dormindo o sono dos anjos. Não estava. Repeti o gesto outras vezes anulando as minhas dúvidas. Estaria na cozinha, banheiro ou teria ido à padaria. Levantei de uma vez, contrariando minha sensibilidade. Fui primeiro ao banheiro; pude ainda sentir seu cheiro, mas apenas o cheiro pairado no ar. Encaminhei-me para a cozinha, com olhos de lagarto, observando cada canto, minuciosamente. Esperaria alguns minutos. A padaria era defronte e certamente ele não demoraria; preferiu preparar-me o desjejum, multiplicando sua docilidade. Depois reiniciaríamos o que eu preferia não ter terminado. Maldito sono. Haveria outras noites para dormir ou dia para descansar; tinha forças e queria muito que as ocorrências fossem ininterruptas.

Voltei ao quarto, olhei no relógio de cabeceira: decorridos 50 minutos. A padaria sempre teve uma clientela expressiva. A fila. Talvez estivesse ainda na fila para pagar. Esperaria um pouco mais. Ainda não estava preocupada, haja vista ser freguesa daquela padaria e a conhecia bem: a demora no atendimento. Certamente não remunerava bem os seus empregados para serem tão lerdos ou os administradores precisassem se reciclar. Preferia, sempre que oportuno, ir ao supermercado a dois quarteirões. É possível que ele tenha pensado o mesmo e ido ao supermercado. O atendimento lá é mais rápido. A qualidade dos produtos deixa um pouco a desejar, mas vale a pena o tempo que se ganha.

Comecei a me preocupar. O relógio marcava 10:15 h. Entrei para o banheiro tomei um banho, vesti-me. Desci, entrei na padaria e perguntei ao rapaz negro que sempre me atendia:

- Você se lembra do Djalma, quando éramos casados? Perguntei ao jovem que atendia a uma senhora que me olhou como que quisesse estrangular-me.

- Sim, claro que me lembro. Respondeu-me olhando para a senhora e para mim em curtos intervalos, assustado, olhos arregalados – provavelmente, evitando ser xingado por ela.

Terminou de atender àquela senhora e repetiu, enquanto eu o aguardava:

- Claro que me lembro do sr. Djalma. Vinha todos os dias aqui e eu sempre o atendia. Mas...

- Não sei. Respondi desolada, como pressentisse algo ruim.

Agradeci ao rapaz e voltei para o meu apartamento. Caso Djalma me ligasse, estaria lá para atendê-lo. Não houve nenhuma ligação. “Onde estaria Djalma? Ele não poderia fazer isso comigo. Aliás, nunca o fez; o dia em que foi embora, escanzelado, inerte –, apenas foi sem preocupar-se com alguma conseqüência. – analisei”. Mas Djalma às vezes tinha uns hábitos esquisitos: chegava sem avisar, a qualquer hora, olhos de raposa. Portanto, à noite poderia dar o ar da graça. Seria prudente esperar.

O sol lentamente se punha, manchando o horizonte de um alaranjado fosco. Djalma não tinha limites quando começava a beber, principalmente se tivesse alguém para bater papo. Esquecia-se do tempo. Certa vez voltou para casa de táxi esquecendo o carro no estacionamento. Preferiu buscá-lo no outro dia. Era mesmo um voado, atônito. Mas eu o amo muito, e me desfaleceria se não o visse mais.

O telefone toca. Corri ansiosa para ouvir a voz de Djalma que sempre dizia dócil: - em menos de 30 minutos estarei em casa, querida! Atendi-o. Era minha irmã – Juliana. Ela mora no sétimo andar e eu no terceiro, no mesmo prédio, infelizmente. Não gosto muito dela. Ela parece meio doida, desvairada, leva-me a médicos estranhos – age sempre com petulância. Não temos uma boa convivência. Prefiro assim: ela na casa dela e eu na minha.

- Isabel, como você passou dia? Indaga Juliana com voz autoritária.

-Tudo bem, Juliana! Em parte, claro: - esperei por Djalma o dia todo e ele sequer ligou-me. Deve ter encontrado uma boa prosa – você o conhece bem.

Juliana, apavorada, chama o elevador. Desce e como tinha a chave entra no apartamento e encontra a irmã – Isabel – sentada próxima ao telefone, cabelos desgrenhados, rosto pálido, boca seca, olhos arregalados.

- O que você quer Juliana? Pergunta Isabel, sem tirar os olhos do aparelho.

- Está esperando alguém te ligar, Isabel?

- Sim, estou esperando por Djalma, Juliana! Estivemos toda a noite juntos e pela manhã ele sumiu. Você não o viu?

Juliana para a sua frente, coça o queixo, olha para o telefone. No impulso, tira-o da base e disca:

- Dr. Afonso! Sou Juliana, irmã de sua paciente Isabel Collin.

- Ah! Sim, o que houve Juliana. Isabel teve alguma recaída?

- Surtou novamente, dr. Afonso! E desta vez acho que foi mais grave. Disse-me que esteve com Djalma ontem à noite, dormiram juntos... – Pobre Djalma; restam-lhe apenas os ossos, espalhados a toda sorte numa cova rasa.