Flores desamimadas

De cócoras, chorava como se houvesse perdido algum familiar, ou algum amor. Olhei-a demoradamente e tentei falar alguma coisa que a consolasse; fui ignorado. Sem saber o que fazer, observei tudo em volta: uma estante abarrotada de livros, um copo em cima da mesa de sucupira e próximo a uma garrafa com resto de uma bebida que eu não conhecia. Algum tipo de uísque, talvez. Nunca fui adepto de bebidas; preenchia minha vida com outros prazeres, como o trabalho. Arrastei a cadeira e sentei-me para esperar que aquela figura chorosa se cansasse, em algum momento.

O sol já entrava sem pedir licença pelas frestas da janela. Na rua, as pessoas corriam para pegar o ônibus, comprar o pão – ouviam-se os rumores. Iniciava-se o dia e eu ali sentado, aguardando que ela sentisse sede; em razão de possível ressaca ou simplesmente pelo fato de ter deixado jorrar todo o seu estoque de lágrimas. O organismo ia pedir água em breve – esperaria, não tinha outros afazeres de maior importância.

Senti sede. Talvez o fato de eu imaginar que ela sentisse sede, impulsionou-me a senti-la antes. Fui à cozinha, procurei por um copo em meio a uma montanha de vasilhas espalhadas na pia. Encontrei-o, porém, precisava lavá-lo. Tomei dois copos cheios de água e retornei ao meu assento. Ela, no entanto, na mesma posição, continuava a derramar lágrimas. Provavelmente tinha algum parentesco com camelo; o estoque de líquido sequer diminuía. Ensaiei mais uma palavra e novamente fui ignorado; acelerou ainda mais o choro.

Impaciente, levantei e caminhei em sua direção. Toquei-a no ombro. Apertei-o para que ela sentisse que alguém a assistia. Foi como se tocasse uma madeira; permaneceu do jeito que estava e chorando, chorando... Soltei-o e dirigi-me à janela. Talvez eu precisasse de ajuda: bombeiros, Samu. Alguém que tivesse mais técnica. Senti-me apavorado, sem ar, com aquele choro descontrolado, incessante.

Abri a janela. Do outro lado – na rua –, as pessoas caminhavam apressadas entre si e por entre os carros, com seus motores barulhentos, como requer uma grande metrópole. Aspirei todo o oxigênio – impuro – que meus pulmões suportaram; senti-me melhor. Atrás, o choro continuava como se estivesse ainda iniciando-se – forte, condoído. Permaneci ali olhando os transeuntes por algum tempo, depois retornei à sala onde permanecia um ser esquálido, de cócoras, chorando – parecia uma atriz protagonizando uma peça dramática.

Impetuoso, levantei decidido: “vou dar uma volta pelo quarteirão”. Enquanto isso, a atriz vai sentir sede, fome ou mesmo o cansaço a faça parar. Caminhei vagarosamente pelo quarteirão olhando a tudo, minuciosamente; pessoas, carros, edifícios – atuando como fiscal em pleno exercício da função. Percorri o mesmo quarteirão por cinco vezes. Suado, cansado, voltei. A atriz fora vencida; estava na cozinha preparando um café. Olhou-me com certo ódio, virando-se em seguida de costas para evitar que eu a olhasse nos olhos. Aproximei-me um pouco, respeitando, porém, a sua privacidade.

- O que houve Clarisse? – Perguntei-a, impulsivo. – Todo esse choro é certo que merece uma explicação plausível.

- Não tenho nada, Toledo! – Respondeu-me com indiferença.

- Não tenho muita pressa! Aguardarei o momento em que você quiser conversar, aliás, preciso ouvi-la. - Propus ansioso para que o momento fosse aquele.

Não obtive resposta. O café havia ficado pronto e diante da exaustiva ocorrência, meu estômago demonstrou-se faminto. Fartei-me de bolo com café, leite e algumas coisinhas que achei na geladeira. Clarisse estava no quarto, calada, quieta, como se nada tivesse acontecido. Podia parecer-lhe normal aquele choro compulsivo; uma simples descarga de emoções. Mas eu estava incomodado, não conseguia entender a razão de tudo aquilo. Precisava preocupar com o meu trabalho.

Fui entrando no quarto sem bater. Afinal, amparos legais me permitiam fazê-lo. Clarisse estava deitada com os olhos semicerrados, o dorso da mão esquerda sobre a testa e com a respiração ofegante. Antes que eu pronunciasse algo, ela com a voz embargada, falou:

- Entre, Toledo! – Sente-se aqui para conversarmos. Tenho muito a lhe dizer.

Em silêncio, apalpei o colchão e sentei-me. Clarisse, sem mover um dedo, com os olhos ainda meio fechados, continuou:

- Você se assustou com a minha atitude, Toledo? – Perdoe-me por tudo. Consigo explicar-lhe toda a minha compulsividade. Meu médico – extravagante – disse que padeço de incontinência emocional e até me receita medicamentos. Contudo, posso a qualquer momento, rir com a mesma intensidade e descontrole que chorei hoje. Não se assuste!

- Mas você não está em tratamento, medicada? Perguntei, observando-a pouco interessada na resposta.

De fato não houve resposta. Embora, confortavelmente assentado, eu quis mudar de posição para ouvir melhor o que Clarisse tinha para falar-me. Nesse momento, meu distintivo preso à cintura, por baixo da camisa de malha, caiu no chão do quarto, incitando Clarisse a abrir os olhos. Olhou-me como quem firma o inimigo. Sem dizer palavra, fechou novamente os olhos, suspirou, abriu os braços e disse:

- A sua presença aqui não me incomoda. Afinal, é o seu trabalho. Mas ouça com muita atenção, Toledo: você nunca presenciou sua mãe sendo agredida pelo seu pai, creio. Eu sim. Por muitas vezes quando cheguei à noitinha do trabalho, encontrei minha mãe preparando o jantar, tentando esconder a vermelhidão em volta de seu olho. Eu sabia que no outro dia, aquela vermelhidão mudaria de cor: arroxearia; hematoma horrível. Isto, frequentemente ocorria, até que um dia meu pai, cansado daquela prática -, preferiu aprimorá-la: ao invés da vermelhidão no olho – rotina –, tingiu a camiseta de minha mãe com um vermelho mais vivo, líquido, num só golpe – inclemente.

- Continue Clarisse! – Quebrei um pouco a emoção dela; precisava ouvir mais.

- Diante disso, Toledo, não hesitei: - aguardei uns dias e numa noite chuvosa, esperei-o dormir, fui à cozinha, peguei a mesma faca. Caminhei, vagarosamente pelo corredor – feliz e consciente –, entrei no seu quarto. Olhei-o por longo período, ressonando. Cuidadosamente, tingi-lhe o pescoço com um vermelho de mesma coloração, que ele impiedosamente tingira a camiseta de minha mãe. Senti um alívio invadir a minha alma. Assentada a sua frente, observei-o quietar-se, ouvindo a forte chuva que caia lá fora. Certamente ela inundaria muitas avenidas de São Paulo e, se quisesse poderia inundar também a minha casa, para lavar todo aquele vermelho nojento, asqueroso e malcheiroso. Ou ainda, levar pela sua correnteza aquele ser inerte, inaproveitável, para bem distante – alimento para algum catartídeo faminto.

Levantei e acenei para Clarisse - esperando que ela abrisse os olhos. Abriu-os. Mostrei-lhe com o indicador que iria ao banheiro e à cozinha. Urinei, tomei um café – frio e horrível. Voltei, assentei do outro lado da cama – exigia-me menos esforço para ouvi-la.

- Clarisse, Clarisse... – pronunciei pausadamente, fitando-a.

Com os olhos abertos, Clarisse demonstrava ter muito mais a dizer. Fiz então sinal para que ela continuasse. Empolgada, continuou:

- Furtaram-me a vida, literalmente; a razão de tudo. E, hoje, a ciência, audaciosamente, julga-me necessitada das drogas. Não as quero mais. Ao contrário, choro e rio quando sou acometida de minhas lembranças – malditas lembranças. Apagaram meus amores, nunca sequer me deram flores. Nunca, nunca... Fui uma desditosa, destituída de quaisquer prazeres – o mínimo que um ser humano mereça. A minha vinda a este mundo não mereceu nenhum crédito; ainda mais tendo como progenitor um ser dotado de toda imbecilidade suportada por um homem. Continuo me sentindo feliz por ter encurtado a sua ridícula e cruel estada nesta terra. Não tenho remorsos. Em oposto, choro pela minha mãe...

Em silêncio, levantei, enfiei a mão no bolso da camisa, saquei o mandado de prisão, joguei-o em cima da cama. Caminhei até a porta da sala. Abri-a. Olhei o ambiente – desolador –, e sai, deixando para trás o infortúnio. Outros afazeres me aguardavam; cidade nervosa.

No outro dia, pela manhã, enviei-lhe as tão sonhadas flores. Nem riso nem choro. Imperou, naquele ambiente, o silêncio sepulcral e um fio grosso de vermelho vivo, líquido, viscoso, correndo por debaixo da porta, misturando-se, aos poucos, à coloração das flores.