Post Scriptum

Toda sua vida fora dedicada ao estudo, ao trabalho e a família. Em sua escrivaninha, tomos e mais tomos a despeito dos direitos e deveres da sociedade, disputavam lado a lado, espaço com a bíblia, e outros livros sagrados. Era um homem de respeito, era um homem de bem. Na igreja, que frequentava ferreamente, de maneira a não se limitar apenas aos cultos, mas também indo as demais atividades litúrgicas abertas aos leigos, era tido como um exemplo admirável. Desde tenra idade, demonstrara interesse e dedicação para com a ordem terceira fundada por seu avô. Era oblato, levando a palavra do sagrado evangelho aos que se encontravam perdidos na escuridão, e reforçando as certezas nos corações dos filhos já iluminados. Em casa, sua esposa tenra e caridosa, seguida a risca a regra da casta dona de casa cristã, sendo fiel e submissa a seu marido, assim ao cristo. Educava os filhos, lhe dando amor, proteção, direção, e protegendo-os as coisas do mundo profano que os cercava.

Os colegas de profissão, advogados, juízes, defensores e promotores, lhe tinham em grande estima. Suas colocações eram sublimes, suas arguições exemplares. Certa vez um acadêmico disse que ler uma de suas petições era como apreciar um manual ancestral, escrito por inspiração direta do altíssimo, que desejava falar sobre os aspectos mais puros da verdade e justiça entre os homens da terra. Nunca precisara mentir para ganhar. Era brilhante, simplesmente brilhante. Certa vez, quando recebera uma comenda da ordem, o próprio presidente da república se deslocara da capital para lhe prestigiar. Como mestre, da secular universidade onde se formara anos antes, já havia extrapolado as graduações acadêmicas, e ainda assim, punha-se a ensinar as novas gerações com tal vontade que, entre todos os graduandos, era poucos os que não se punham a disputar com unhas e dentes uma vaga nas suas disputadas classes.

Apesar de grande aplicador das ciências do direito, era um apreciador da teoria e da filosofia. Suas obras a despeito da filosofia do direito, lhe garantiram lugar de destaque ao nome de outros, de igual importância ao estudo deste ramo, tão desprezado entre os demais profissionais, e mesmo entre alguns doutores da área. Seu reconhecimento internacional era tal, que transpunha os limites institucionais ao qual o regime político do país impunha a seus filhos naquele momento.

Sua esposa era sua companheira de vida. Conheceram-se ainda jovens. Ela, filha de uma família tradicional de banqueiros. Criada por avós na Espanha, viera ao Brasil durante a adolescência para conhecer o país que lhe dera luz, e aqui ficara. Versada na etiqueta, sabia a ser a primeira a acordar e a última a dormir, após supervisionar pessoalmente todas as tarefas e funções da casa. Era uma dama. Moderada a mesa, entregue a volúpia do marido na cama, sabendo sublimar seus desejos em prol do matrimônio. Nunca tivera um orgasmo. Soubera certa vez o que era pela boca de uma empregada, ao qual demitira após ordenar ao criado que lhe desse uma sova. Criadagem baixa. Gentinha. Pensar que o senhor morrera para redimir a eles do pecado. Era grata a Deus por tudo que lhe ocorrera em sua vida, e desde cedo orava com ardor, pedindo aos céus que lhe ensinassem a ser uma boa consorte para aquele jovem noivo, que a família, leia-se o pai, lhe apresentara dias antes. A família dele, o noivo, era cristã, estabilizada, decente e , principalmente, grande acionista de um dos maiores conglomerados bancários do Brasil. Tal união, além de bem vista pela santa madre igreja, seria bem vista aos olhos dos acionistas de ambos os grupos, permitindo uma vida feliz e estável para ambos, marido e mulher.

Certa vez se questionou sobre algo que o marido disse, sobre como era curioso que no altar o padre falasse em “os declarar marido e mulher”. O homem, através do ritual se tornava marido. A mulher por sua vez permanecia mulher. Lhe seria negado o direito de evoluir sua condição para algo a mais que mulher? Seria a condições de mulher já completa por si mesmo desde a epigenesia? Ele questionou e ela pensou, mas por fim optou por uma penitencia, pois tal questão fugia ao seu dever como mulher.

Eram perfeitos. Ele era perfeito. Conduzira sua vida de maneira ímpar. Uma carreira sólida. Um passado impecável. Um futuro sempre promissor, mesmo já tendo passado dos 40. A idade em nada lhe tirara o vigor das realizações. Era um inovador incansável. Um homem de fibra, cuja determinação em fazer e vencer chegara a um ponto que, o anunciar de uma nova coquista, tirara a surpresa dos contemporâneos, pois, o sucesso lhe era normal. Não havia mais espanto, não havia mais surpresa. Ao menos assim pensavam, até o momento em que, numa manhã, a empregada, seguindo uma trilha de apetrechos de maquiagens, batons, cílios, e outras quinquilharias mais, adentrara o escritório proibido de seu patrão, onde, preso ao ventilado, em um belo vestido vermelho vivo, pendia o corpo do brilhante advogado de 45 anos, que trazia ao peito um bilhete escrito em sangue: pode uma vida de realizações, superar uma vida de mentira?

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