Uma segunda chance

(Esta estória foi baseada numa piada contada no NerdCast – a eles os devidos créditos!)

Capítulo I

Naquela manhã havia acordado tarde e saído correndo de casa, sem ao menos tomar o café da manhã: já havia me atrasado para o trabalho em duas oportunidades durante a semana, e mais uma vez iria me render uma bela advertência.

— “Droga!” – O ônibus da empresa já havia passado, mas eu tinha uma chance ainda: descer mais duas quadras a pé e apanhar o 30012 que fazia o mesmo percurso e, com certeza, me livraria daquele apuro.

Chego quase sem fôlego ao local em que, em poucos minutos, minha salvação passaria. Apoio o ombro no suporte da cobertura do ponto de ônibus e inspiro fundo, aguardando minha respiração voltar ao normal.

— Tóóóiinnnnnnnn! – “Que barulho foi esse? Ah, claro! Meu estômago reclamando... putz! O ponto é em frente a um mercado... e lá deve ter umas frutas... Acho que dá tempo de pegar alguma coisa pra ir comendo no caminho!”

Entro rapidamente no hiper e me dirijo resoluto até a seção de frutas, onde uma deliciosa maçã, vermelha como a mais bela ilustração de ‘Branca de Neve’, sorri para mim. Apanho-a e me dirijo ao caixa mais próximo, só tem uma pessoa à minha frente: vai dar tudo certo!

— Moço! Moço! – repentinamente sinto alguém puxar meu cotovelo.

Olho para trás e me deparo com a figura de uma velhinha, segurando numa mão uma cebola e, na outra, me oferecendo um saco plástico.

— Moço, o senhor tem que colocar sua maçã no saquinho... Senão eles não pesam...

Percebo instantaneamente, pelos pequenos pedaços de casca de cebola que ficaram dentro do saco, que ela acabara de retirar o bulbo dali para oferecê-lo a mim.

— ‘Brigado... – respondo, sem me importar que ela talvez não possa pesar sua cebola sem o saquinho, só quero encerrar aquela conversa por ali.

— Tem uns que pesam... mas, aquela caixa ali – disse ela, apontando com o beiço a funcionária que iria me atender em breve –, às vezes não pesa...

Era uma velhinha de cabelos lilás (porquê elas fazem isso?), já um pouco ralos na nuca – o que eu podia observar com perfeição, pois ela não chegava à altura dos meus ombros. Usava um vestido florido, daqueles de uma peça só e que vão até o meio das canelas, óculos bifocais de grau elevado, um guarda-chuva dependurado ao braço e... pantufas rosas de coelhinhos nos pés.

— Muito bonita a sua maçã! – ela me disse, me analisando por cima dos óculos – Mas, às quartas-feiras eles têm frutas melhores... é o dia da feira... sabe?

— Tá...

Suas mãos eram nodosas e enrugadas, mas revelavam uma pessoa vaidosa, pois trazia as unhas caprichosamente pintadas de um vermelho intenso e o rosto esbranquiçado por algum tipo de pó que nele passara (por qual motivo, não sei).

— Nos outros dias as frutas são boas também, mas a quarta-feira é o dia especial...

— Aham...

— Você vai comer essa maçã? Não tomou o café da manhã?

A pele de seu rosto parecia ser maior que a cabeça e ter sido encaixada de qualquer jeito apenas para encobrir os tons de vermelho sangue que ainda se tornavam visíveis em suas pálpebras frouxas, também a pele dos braços ficava pendurada como que sobrasse, logo acima dos cotovelos.

— Olha... a senhora pode passar na minha frente...

— Não... não... muito obrigada! Eu não tenho pressa... sabe... tenho um neto que gosta de maçãs também...

Observo que, apesar do vestido já estar bastante puído pelo uso, e de suas pantufas já se encontrarem um tanto quanto desbotadas, o conjunto, na sua totalidade, encontrava-se impecavelmente limpo e muito asseado.

— Próximo!

A voz do caixa, que seria minha salvação, soou como a sineta da escola no último dia de aula antes das férias. Avanço rápido, tentando disfarçar um pouco a pressa para não demonstrar o que é a mais pura realidade: quero me afastar o mais rápido possível daquela velhinha de cabelos lilás, suas perguntas, suas pantufas e suas estórias.

A transação foi de uma perfeição impressionante: maçã no saquinho – saquinho na balança – valor a ser cobrado – notas miúdas – troco – sacolinha... Perfeito!

Dirijo-me para a escada rolante que vai me levar até a calçada do ponto de ônibus, pela vidraça do mercado posso observar o ponto lotado: tudo certo – o 30012 não passou ainda!

— Moço! Moço!

— Hã?

Não posso acreditar: o caixa atendera a velhinha quase tão rápido quanto a mim... e sem ter colocado a bendita cebola no saquinho!

— O senhor esqueceu o ticket... – ela diz, vindo em minha direção com o pedaço de papel na mão.

— ‘Brigado! – retorno um passo e arranco o ticket das mãos dela, já me preparando para girar nos calcanhares em direção à liberdade.

— Sabe... eles fazem um sorteio todo sábado... com o ticket... se tiver sorte pode ganhar uma torradeira!

— Tá! – apesar do inconveniente, não consigo largá-la falando sozinha ali... não foi a educação que recebi.

— O liquidificador é bom também... mas, eu não tenho torradeira...

— Aham!

— O senhor tem torradeira? (Penso, por um momento, porquê os idosos fazem perguntas tão parecidas com as que as crianças fazem).

Nesse momento, com um estrondo surdo, dois funcionários do mercado surgem do nada (pelo menos não os havia percebido até aquele momento) com uma interminável fila de carrinhos vazios atrelados um ao outro, em direção à escada rolante: minha rota de fuga.

Abandono a educação e olho novamente além da vidraça: meu ônibus está parado no semáforo, uma centena de metros antes do ponto, tento alcançar a escada, mas, tarde demais: a fileira de carrinhos já havia embicado nela – estou perdido!

— O senhor pode ir por ali – disse a velhinha, apontando para a minha esquerda com o guarda-chuva –, tem uma rampa que vai sair no ponto de ônibus!

Saio em carreira desabalada na direção indicada – uma dúvida me passa rapidamente pela cabeça: poderia confiar naquela mulher? Não estaria ela querendo, mais uma vez, me atrasar e me fazer perder o emprego? Ou, quem sabe, estaria apenas tentando ganhar tempo suficiente para dissertar sobre as probabilidades de se ganhar uma torradeira num sorteio de supermercado? Mas eu não tinha outra saída: tinha que arriscar alcançar a rampa... era a minha única chance!

— Moço! Cuidado com a saída dos carros...

Não dou atenção ao que ela me grita lá de trás, já havia saltado a mureta que servia de guarda-corpo à rampa e avançado aos tropeções pela descida levemente inclinada. Ao chegar ao final da rampa (que depois vim a descobrir que dava acesso ao estacionamento do mercado), fui tomado de um susto tremendo: a buzina de um carro que saía à toda das garagens, não me apanhando por pouco. Pude ver o ônibus logo à minha frente dando seta para sair do ponto, já com todos os passageiros embarcados, apenas aquele veículo me separava dele, mas aquela fração de segundo que me conteve foi o suficiente para pôr tudo a perder: quando consegui alcançar o ponto de ônibus, o 30012 já trocava de marcha mais à frente, deixando uma espessa coluna de fumaça no ar.

— Agora ferrou tudo! – solto um urro em meio à calçada.

Procuro esvaziar a mente e listar uma possível opção que salvará a minha pele. Eureka! Daria a volta no quarteirão à frente para chegar até o início do elevado que passava acima do trajeto do meu ônibus, circundando o próprio prédio do mercado às minhas costas: ali havia um ponto de lotação que teria que me servir, pois o que tinha nos bolsos não daria para um táxi.

Atravesso a rua perigosamente por entre os carros em movimento e, ao chegar ao lado oposto, sinto aquela estranha sensação que geralmente ocorre nos filmes de terror: a sensação de que tem alguém te observando.

Volto o rosto lentamente (ao melhor estilo Schwarzenegger) e paro meu olhar no andar superior no mercado: na vidraça por onde há pouco eu observara a rua, estava parada a velhinha de cabelos lilás, as duas mãos apoiadas no vidro: uma segurando a cebola e a outra o guarda-chuva – os olhos por trás das lentes dos óculos fixos em mim.

Quando ela vê que eu a observo, realiza um pequeno aceno – não sei se de deboche por ter destruído a minha vida – ou, simplesmente... de adeus!

Dou as costas àquela pequena passagem da minha vida pelo Inferno de Dante e sigo correndo em direção ao ponto de lotação.

Finalmente as coisas começam a dar certo: ao chegar à Van sou o ultimo passageiro a completar a lotação, e o motorista dá a partida imediatamente e sobe o elevado à toda a velocidade!

Acomodo a cabeça no encosto do banco, fecho os olhos e procuro relaxar. Está tudo acabado! Foi apenas mais um momento difícil da minha vida que consegui superar. Amanhã mesmo comprarei um novo despertador que nunca mais me fará passar por uma situação como a de hoje.

Uma sirene dos bombeiros ao longe me tira do transe. A Van está passando pelo viaduto bem no ponto em que cruza por cima da avenida do mercado, começando a circundá-lo. Abro os olhos e lanço o olhar em direção à entrada do hiper, ao longe. Há um aglomerado de pessoas na saída da rampa por onde fugi de um terrível destino... a rampa que termina na saída dos carros do estacionamento.

Um pouco antes da Van passar pela lateral do prédio do mercado e me tirar a visão do local que meus olhos estão fixos, ainda consigo ver a viatura dos bombeiros parar em frente ao ponto de ônibus. Os transeuntes e curiosos se afastam para dar passagem ao socorro e, de relance, consigo ver um vulto imóvel ao chão... um vulto aparentemente coberto por um tecido florido... um vulto com um chumaço de cor lilás numa das extremidades...

A imagem se perde por trás das paredes do mercado e percebo que o saquinho com a maçã que eu carregava caiu ao chão... não me importo:

Perdi a fome.

Capítulo II

continua...