JAGUARA, A FERA DA BARRIGUDA

     Jaguara nasceu e criou-se no alto da serra da Barriguda, no Rio Grande do Norte. Sua mãe, a índia Iataí, fora perseguida por caçadores de índios. Eles, depois de matarem o índio Sauá, partiram à procura da sua companheira. Iataí, armada com uma lança e com um grande ferimento na barriga que fazia jorrar sangue em abundância, subiu a serra com dificuldade. Levava consigo uma criança no ventre. No alto encontrou um abrigo para parir e em seguida morrer. Era uma furna, morada de onças pintadas. A pequena índia, em vez de ser devorada, foi acolhida e amamentada pelos felinos.
     Os anos passaram. A indiazinha, acompanhada por algumas onças, descia com freqüência a serra à procura de água e de alimentos. Trazia sempre consigo a lança que pertencera à sua mãe. Colhia melão, melancia e subia nos juazeiros, de onde pulava dos seus galhos.
     Nunca tivera contato com outro ser humano até os oito anos de idade. Ela havia descido a serra naquela manhã bem cedo e, como sempre, caminhava no matagal. Próximo havia acampado um grupo de desbravadores, comandado pelo Capitão Porfírio de Souza. Eram nove homens e uma criança. Elias, de dez anos, filho do Capitão Porfírio, havia se distanciado um pouco do grupo, quando ouviu o barulho de animais no meio do mato. Subiu com pressa num juazeiro e viu com espanto uma indiazinha junto com cinco onças. Ficou tão assustado que deixou cair o facão que trazia na mão. Os animais ao perceberem a presença do visitante, partiram com ira para a árvore que o abrigava. A índia olhou para o alto e pela primeira vez viu outro ser semelhante a si. Seus pequenos olhos amendoados quase saltaram. Com um grunhido ela conseguiu acalmar os felinos e fez sinal para Elias, mandando que ele descesse. Ele, amedrontado, gesticulava com a cabeça afirmando que não desceria. Ela subiu na árvore com grande rapidez, fazendo uso das mãos e dos pés, como se fora um macaco. Aproximou-se cautelosamente do galho em que Elias estava. Olhou-o dos pés à cabeça, com espanto. Com a boca, colheu alguns juás e lhe ofereceu. Ele não aceitou e afastou-se mais um pouco dela, fazendo balançar o cordão de ouro com uma medalha que trazia pendurada ao pescoço. Ela ficou maravilhada com o ornamento. Apontou-o e soltou um grunhido.
     O Capitão Porfírio ao sentir falta do filho, ordenou aos seus homens que o procurassem. Joaquim Sabino foi o primeiro a ver Elias, que descia do juazeiro com a pequena índia. Fez um silencioso sinal para o capitão e mostrou as onças embaixo da árvore.Eles apontaram as suas espingardas para os animais. Elias percebeu a presença dos homens e gritou assustado:
     - Não atirem! Não atirem!
     Indiferentes ao apelo do menino, dispararam vários tiros, atingindo duas onças. A indiazinha, assustada, abraçou-se às onças agonizantes e começou a chorar, enquanto as outras onças fugiam. O Capitão, aliviado, chegou próximo ao filho e disse:
     - Eu não te disse para que não te afastasses do acampamento?
     - Disse...É que eu queria andar um pouco.
     - Aqui é um lugar muito perigoso. Você por pouco não foi comido pelas onças!
     - Ela não ia deixar isso acontecer – disse Elias, apontando para a pequena índia, que chorava abraçada a uma das onças mortas.
     - Quem é ela?
     - Não sei. Só sei que as onças são amigas dela.
     A índia levantou o rosto e viu um dos homens tentando virar com a espingarda um dos animais mortos. Num repentino salto ela o derrubou, como se fosse uma fera. Rasgou-lhe a camisa e o feriu no pescoço. Os outros homens conseguiram contê-la. Elias pediu ao Capitão Porfírio que mandasse soltá-la.
     - Soltem-na! – ordenou o Capitão.
     Soltaram-na. Ela correu em disparada para a serra.

     Depois daquele dia a pequena índia foi acometida de uma tristeza profunda. Havia perdido, não duas onças, mas duas irmãs. A causa de toda tragédia, para ela havia sido Elias. Durante dias não desceu à serra. Quando a fez, foi com extrema cautela.
     Caçadores e aventureiros propagaram a história de que no alto da serra Barriguda morava uma menina-onça. Diziam até que ela tinha couro de felino. Passaram a chamá-la de Jaguara.

     Os anos passaram. Jaguara tornara-se mulher. Fora vista mais de uma vez por caçadores, à distância. Comentava-se que era bonita e que tinha as garras de uma fera. A sua fama aumentou mais ainda quando, um certo dia, um grupo tentou pegá-la. Subiram a serra e, antes de qualquer investida, foram surpreendidos pelas onças e um deles teve parte do rosto dilacerado pelas unhas de Jaguara. Poucos conseguiram descer a serra.

     Um certo dia, o jovem Elias cavalgava com destino à sua fazenda em Martins. Em sua companhia viajavam Batista, um velho vaqueiro do seu pai, e mais 12 homens recentemente contratados. Dentre eles estava Venâncio Araújo, que participara de diversos assassinatos de colonos e índios. Era o seu maior prazer contar esses episódios.
     Elias resolveu desviar um pouco a rota da viagem, indo em direção a serra da Barriguda. Jaguara nunca havia saído do seu pensamento, mesmo depois de passados dez anos. Tencionava revê-la, porém sabia que era uma tarefa quase impossível.
     Acamparam a uma grande distância da serra. Ele ordenou aos seus homens que permanecessem no acampamento e caminhou sozinho em direção à serra. Procurou um lugar próximo ao local onde tivera o encontro com Jaguara. Aguardou longas horas, e nenhum sinal dela. No dia seguinte retornou bem cedo ao local. Subiu numa aroeira e esperou, olhando à procura de algum sinal dela. À distância ele viu o mato mover-se e aos poucos ela apareceu seguida pela comitiva de felinos. Os seus longos cabelos negros flutuavam ao vento. Parou e sentou-se numa pedra, sorrindo. Ele desceu e tentou aproximar-se um pouco, entretanto, o grunhido das feras fizeram-no subir com rapidez numa árvore. Decidido a enfrentar qualquer perigo, tomou a iniciativa e gritou:
     - Jaguara!
     Ela tentou correr. Parou e escondeu-se detrás de uma árvore próxima. Ficou espreitando, enquanto ele gritava alto. Foi então que ela o viu no alto da árvore. Disposta a enfrentá-lo, partiu em sua direção, seguida pelos fiés irmãos felinos. Enquanto tentava subir na árvore, Elias gritava:
     - Jaguara, você não está me reconhecendo?
     Sem entender as palavras dele, a mulher-onça subia furiosamente à procura da sua presa. Ele gesticulava tentando fazê-la entender. Quando chegou bem próximo, ela viu o cordão de ouro no pescoço dele e de repente parou. Reconheceu-o. Com um alto grunhido fez os animais se acalmarem. Imóvel, com o olhar fixo em Elias, ela parecia querer incriminá-lo pelas mortes das onças no passado. O tempo não fora capaz de fazê-la esquecer o trágico acontecimento.

     Venâncio Araújo aproveitou a ausência de Elias para semear a discórdia entre o grupo. Reuniu todos os homens e disse:
     - Pessoal, nós temos que ir até lá ver essa índia. Dizem que ela é que nem um bicho.
     - Não! Vamos esperar aqui – protestou o vaqueiro Batista.
     - Deixe de ser besta, cabra! Nós vamos pegar essa mulher-onça! – retrucou Venâncio.
     - De jeito nenhum...O patrão não vai gostar.
     Todos ficaram ao lado de Venâncio. Batista esboçou uma pequena reação; Venâncio enfiou-lhe uma faca na barriga, fazendo-o cair sem vida.

     O reencontro de Elias e Jaguara foi interrompido, de repente, por alguns tiros. Ao olharem para baixo da árvore, viram uma onça cair morta, enquanto as outras fugiam velozmente.
     Surgindo de dentro do mato, Venâncio Araújo junto com os outros homens empunhavam as suas armas. Elias desceu com Jaguara e, furioso, disse:
     - Por que vieram até aqui? Eu não disse para ficarem no acampamento?
     - Disse. Mas não obedecemos as suas ordens – disse Venâncio, apontando a espingarda para Elias.
     - O que está acontecendo? Onde está Batista? – perguntou Elias.
     - Ele tá morto. Saia da frente que nós queremos a índia.
     - Vão ter que passar por cima de mim – desafiou Elias, sacando o revólver.
     Elias recuou alguns passos. Um dos homens atirou, atingindo-o de raspão no braço. Ele protegeu-se por trás de uma árvore, enquanto atirava. Jaguara conseguiu fugir em direção à serra. Elias com extrema velocidade conseguiu também fugir, seguindo-a. Subiram a serra juntos. Abrigaram-se no ponto mais alto, cercados por cinco feras.
     Em pouco tempo os perseguidores apareceram. Com muitos disparos, mataram as cinco onças e feriram Elias na perna direita e no braço esquerdo. Mesmo ferido, ele conseguiu acertar em dois homens, que caíram mortos. No entanto, atingiram-no com uma pedrada na cabeça, fazendo-o desmaiar.
     Venâncio investiu contra Jaguara, tentando agarrá-la, enquanto ela recuava de costas para o precipício, defendendo-se com a lança. Parou, olhou para baixo e pulou de um dos pontos mais altos da serra. Perplexo, Venâncio olhou do alto, juntamente com os outros homens. Foram surpreendidos por um bando de mais de vinte onças que chegou repentinamente ao alto da serra. Os animais os estraçalharam, lançando os seus corpos mutilados de serra abaixo. Alguns dos animais caíram juntamente com os homens mortos.
     Depois de vingarem Jaguara, os felinos olharam durante alguns minutos para baixo, como se a procurassem. Num movimento sincronizado, pularam todos.
     Ao acordar, Elias procurou Jaguara. Gritou pelo seu nome, mas escutou apenas o eco da sua voz. Com muito esforço, desceu a serra e durante dias procurou o corpo dela. Guiado pelos urubus, achou pedaços de corpos humanos e de onças, em estado de putrefação, entretanto, a lança foi o único sinal encontrado de Jaguara.

IMAGEM: Google.