O trem

Era uma tarde tranquila, temperatura agradável e céu bonito de se ver. O ano era 1980, maio ou junho. A neve já por completo havia desaparecido e tudo, como de um dia pro outro, tornara-se verde, bem verdinho.

A propriedade chamava-se Moinho Antigo e era uma das mais belas da região, especialmente na primavera. Era uma fazenda velha, cheia de história e superstição.

Logo à frente havia o celeiro. Vermelho, alto, telhado muito íngrime para facilitar a queda da neve que era muita, sendo o inverno longo, cinco de doze meses.

Eu lembro vividamente dos campos na primavera. Era uma região chamada Pradaria Dourada onde o gramado era verde e ouro. De longe, quando ventava, uma sensação interessante costumava me visitar. Era um sentimento poético e ao mesmo tempo que lindas palavras me vinham à mente, parecia-me piegas tentar reproduzí-las em forma de texto.

Eu ficava na varanda, sentado, olhando até o vento parar ou até um cachorro latir e me despertar. Às vezes eu virava a cadeira e olhava o lado leste da fazenda, onde alguns cavalos pastavam e sempre um, o preto, corria. Ele era o cavalo selvagem, aquele que ninguém queira montar.

Muitas tardes passaram caladas, mornas e pensativas, como aquela; eu na varanda e olhos nas Pradarias Douradas.

O lado sul da fazenda abrigava uma região alagada, bosqueada e um braço do rio. Para lá é que se via o trem. Os meninos sempre iam para aqueles lados, ora para pescar, ora para jogar pedras no trem que passava barulhento e intrigante: para onde vai? O que leva nele? Será que o maquinista veste-se de maneira engraçada? Eu nunca fui, nunca fui ver o trem de perto. Preferia a minha cadeira na varanda e quando o barulho anunciava a sua passagem, eu fechava os olhos e imaginava como ele seria. Na minha opinião o trem era vermelho, para combinar com o celeiro, mas no fundo sabia que não era.

Eu era um garoto, tinha oito anos, mas todos davam-me seis. Eu era branco, muito branco e queimava fácil no sol do verão. Dizem que quando eu nasci, eu me tornei amarelo, depois cor-de-rosa, só para depois ser branco assim. Minhas bochechas costumavam ser mais redondas e coradas, mas isso era antes, antes de tudo acontecer.

Eu estava pálido, magro e não me sentia muito bem. Eu aprendi cedo que Deus tira as almas dos corpos não por maldade, mas pelo bem. Se nisso acredito ou não, ainda não sei. Menos de uma década não pôde ensinar muito sobre Deus e as suas intenções.

Eu humildemente pedi aos mais velhos que não me levassem à Igreja, pois me sentia estranho, com calafrios. No entanto, prometi que rezaria todas as noites, mas nem isso eu fazia. E quando fazia, dormia no meio da prece e depois tinha pesadelos. Castigo de Deus.

Mas não ligava e até gostava, porque tinha algo novo pra contar no café da manhã.

Era junho, agora sei. Eu estava sentado na minha cadeira e lia um livro que me foi dado. Lia uma página, parava e olhava a campina, o vento que acariciava as flores, o trigo, o capim. Algumas árvores, mapples, que ainda estavam parcialmente verdes, moviam-se de leve.

De longe vi a caminhonete de meu pai chegar. Ford, azul, nova, mas suja de lama. Ele trazia uma caixinha com uns furos na tampa. Veio em minha direção. Senti vontade de correr, mas não pude, sabia que iria me faltar o ar e permaneci sentado, mas fechei o livro. Meu pai sentou-se ao meu lado. Ele vestia uma camisa de flanela e reclamava do calor.

- O que é isso nessa caixa?

- É pra você!

Meu pai não costumava dar presentes toda a hora, mas desde quando adoeci, ele tornou-se particularmente sensível, assim como as mulheres da casa.

Eu abri a caixa que estava morna e era um filhotinho de gato. Meu gato? Meu gato! Aquele dia senti-me curado! Senti-me feliz! Fiz uma casinha de papelão, caixinha de areia, briquedos com a lã da minha mãe e até dei a ele o meu primeiro nome como seu sobrenome. Silvester Matthew. Ele era malhado, branco, amarelo e marrom.

Minha mãe estava grávida. Desde quando descobrimos a minha doença, ela tentava engravidar e finalmente aconteceu. Ela contou para a família na manhã de Natal. Depois descobrimos que seria uma menina. Amylee.

Eu entendia a sua chegada como a minha substituição. Não gostava, mas aceitava com paz.

Quando meu pai me deu Silvester, minha mãe foi no porão e achou um velho sininho mensageiro dos ventos e o pendurou logo acima da minha cadeira de balanço.

Eu sentia a tarde cair e acariciava Silvester, cujo miado era como um choro de nenê recém-nascido, dizia Sonia, minha vó.

Aquele dia estava sendo especial, a chegada de Silvester na minha vida tinha sido benéfica, mas eu sabia que pela manhã Vó Lauren viria para irmos ao médico. Tentava não pensar nisso, mas quando me dei conta, já estava no consultório.

Vó Lauren era ruiva e mais jovial que minha outra Vó que morava conosco. Ela é mãe da minha mãe e na verdade elas não se pareciam muito. Ela havia recentemente vindo do Sul pra ter conosco no Norte e reclamava do frio, do longo inverno, do curto verão. Mas no geral ela não reclamava de mais nada e até tinha idéias inovadoras, como a de comprar um computador e video-game para mim. Eu tinha muita vontade de perguntar coisas, mas como não erámos muito próximos, sentia-me acanhado. Perguntaria como era Louisianna, onde ela tinha morado a vida toda. Perguntaria se lá todas as pessoas falavam engraçado como ela. Perguntaria se ela gostava de mim. Mas nunca perguntei.

O papel de parede do consultório me fazia imaginar coisas estranhas, como o forro de um caixão e cruz de cemitério. Tons pastéis, flores de plásticos, revistas antigas, nenhum brinquedo.

Quando a enfermeira chamou meu nome, pensava no Silvester e se estava bem. Fui colocado sozinho em uma sala por mais de meia hora e não posso explicar o que senti. Já me preparava para o pior e enfrentava sentimentos muito mais velhos que a minha idade. Pensava no que dizer e o que fazer no fim dos meus dias, quando a porta abriu bruscamente e eu fui agarrado, apertado e abraçado por Vó Lauren! Ela estava chorando, mas podia sentir que era de felicidade! Chorei também, acho que mais de medo e angústia que de felicidade. O médico explicou o processo, riscos e benefícios. Eu iria receber um rim da minha Vó Lauren! Tudo tinha dado certo! Eles iriam me curar!

Passado um ano, eu então com 11 anos, havia ganhado uns cinco quilos, a minha cor era ótima e fiz amigos, posto que havia retornado à escola.

Assim que pude, fui ver o trem. Sozinho, numa tarde fria de fim de outono. Sentei numa pedra lisa e esperei horas até que, lá longe, ouvi o barulho dele vindo, e fui até o trilho para ver se era ele mesmo, e era! Meu deus! Que grande! Não sei por que, mas fiquei em pé, no meio do trllho e o trem vinha se aproximando, aproximando... Queria ver o maquinista e sua roupa! No último momento, o trem soltou a sua buzina altíssima e pulei para o lado, caindo no chão. Tentei contar quantos carros o trem puxava, mas perdi a conta e só sei que mesmo o trem sendo cinza e feioso, era de fato a coisa mais impressionante que eu já havia presenciado.

Voltei pra casa correndo e pela primeira vez na vida, me senti vividamente completo. Completamente vivo.

Laís Mussarra
Enviado por Laís Mussarra em 25/08/2010
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