"Pega! Mata! Lincha!"

Era dia do nosso aniversário de namoro. Sete anos já. A Lara era uma boa mulher. Quarenta e oito anos. Oito a mais que eu. Ótimo. Nossa conversa sempre fluía. Ela tinha lindos olhos castanhos cor de mel que ficavam verdes de acordo com a variação da luz. Um metro e setenta. Cabelos castanhos arruivados. Sempre me dizia que estava ficando “gorda como uma porca”. Elas sempre dizem isso. Para mim estava no ponto ideal. Difícil convencer uma mulher quando ela coloca na cabeça que está imensa. Todas dizem a mesma coisa. Por mais esguias, gostosas e fornidas que estejam. Elas sempre vão achar defeito nelas mesmas. Parece que isso faz parte da carga genética delas. Nunca vou compreendê-las. Em nem quero. Quero apenas amá-las. E estudá-las. Para poder escrever cada dia melhor.

Lara foi me buscar de táxi na porta do emprego idiota que eu odeio e que todo dia tenho que comparecer para continuar sobrevivendo. Um beijo na boca de bom dia. Onze e meia da manhã. Deu a direção de um ótimo restaurante de massas que tínhamos descoberto juntos. Maravilha. Eu iria comemorar um pouco. E depois voltar trabalhar e mais tarde iríamos para minha casa fazer um amorzinho gostoso regado a uísque escocês. Uma coisa nela que eu admirava era a capacidade de sempre ter assunto. Sempre tinha algo para me contar. E eu gostava de ouvi-la. Entregava ao puro prazer e escutar o som de sua voz. Acalmava-me como um mantra. Claro que quando ela estava a fim de discutir a coisa ficava feia. Ninguém é perfeito. Descemos do táxi e eu paguei a corrida. Entramos no restaurante e procuramos uma mesa afastada para podermos comer e bater papo sem sermos incomodados pela turba do horário de almoço. Quando vou a algum lugar fico somente analisando o ser humano e sempre chego à mesma conclusão: que somos umas criaturas patéticas, vaidosas, gananciosas, egoístas, materialistas, preconceituosas e sem nenhum pingo de vergonha ou caráter. Que nós apenas servimos para emporcalhar o planeta e falar coisas erradas na hora errada. Ou rir de piadas sem graça. Ou encher e boca de comida que ninguém está com vontade de comer. Ou gastar dinheiro com coisas que não levam ninguém a lugar nenhum. Ou para simplesmente sacanear com a vida do semelhante. Quando largarmos de pensar apenas em nossos rabos delicados ou quando simplesmente deixarmos nosso próximo viver a vida em paz estaremos zerados. Só que isso não vai acontecer enquanto eu viver. Talvez não aconteça nunca. Posso até apostar.

Sentamos a uma mesa perto da cozinha e longe do toalete. Lugar perfeito. A Lara sempre teve um faro incrível para essas mesas. E a convivência comigo a fez ficar mais esperta quando a estes detalhes. Não sou misantropo muito menos misógino. Só odeio gente. Simples assim. Não tenho preconceito. Ou melhor não tenho preconceito direcionado. Odeio todos na mesma proporção. Odeio judeus, brancos, amarelos. Não gosto da raça humana. Mas tenho que conviver com ela. Não há escapatória. Talvez no dia em que eu pirar de vez vire monge asceta e vá viver numa caverna. Não está longe disso. Não gosto de crianças e tenho horror aos adultos. Esses são os piores. Vivendo num eterno jardim de infância e se comportando como tal. As crianças são mais verdadeiras, mas quando crescem um pouco já ficam arrogantes e desaforadas como seus pais. Nenhuma novidade nisso. Apenas a ordem natural dos fatos. Os indianos, os chineses e os esquimós são os únicos que são civilizados. Que estão em sintonia com a natureza. O restante de nós continua perdido em tarefas cotidianas irrelevantes de banais. Continuamos tateando no escuro e cada dia mais assustados e acuados como frangos nos poleiros. Nós pedimos por isso. E recebemos diariamente nossa ração de chutes na bunda. E ainda têm alguns mais perdidos que outros que ainda pedem bis. E recebem bis. E se sentem gratos por suas vidas medíocres e suas posses materiais irrisórias. Mas eu estou chovendo no molhado e assim não vou chegar a lugar algum.

A Lara deu-me o embrulho de presente. Abri com os olhos brilhando. Ela tinha bom gosto e sensibilidade. Sempre tivera. Desde que eu a conhecera na casa de amigos em comum. Foi amor a primeira vista. Levamos mais de dois anos para nos encontramos de novo e quando aconteceu saiam faíscas dos nossos olhos e os nossos corações bateram em sintonia. Raramente isso acontece. Quando acontece eu aproveito. Causamos uma boa impressão um ao outro. Desentendimentos sempre existem. Não dá prá evitar. As cuecas jogadas atrás das portas ou as toalhas sobre a cama sempre são motivo de discussão. Coisas da vida. Que dúvida. Fizemos nossos pedidos. Espaguete com almôndegas para mim e pene ao molho de funghi para ela. Bom timing. Refrigerantes e água mineral. Se eu começasse a beber naquele horário não iria voltar para o trabalho e tudo ficaria acumulado. Ninguém ajuda ninguém. E não sou tolo o suficiente para achar que quando ajuda isso faz diferença. É apenas uma troca. Quero ficar fora dessas inter-relações. Não interajo com essa sociedade neurótica. Pena que eles acabam me prejudicando de um jeito ou de outro. Inevitável. Ou como dizia um escritor local, Fatal.

O garçom levou um bom tempo para nos servir, mas como era dia de comemoração resolvi desencanar. Só que ele iria ficar sem gorjeta. Toma lá, dá cá. Meu regalo era um relógio de bolso invocado com corrente de prata e auto- relevo na tampa. Demais! Eu disse que a Lara tinha bom gosto.

Chegou o grude. Estava meia boca. Dava pro gasto. Tudo bem. Comemos, conversamos e nos beijamos. As pessoas das mesas próximas nos olhavam com um olhar misto de ódio, raiva e inveja. O que haveria de errado com elas? Nada. Ou quem sabe tudo. Nascidas e nada prontos para morrer. O que teria dado de tão errado em suas vidas? Nada. Essa era a resposta que eu daria. Apenas foram criados em uma brutal ilusão e quando viram seus castelos de areia serem soprados aos vento ficavam frustrados, putos e desarvorados. Entravam em pane. Desesperavam-se por coisas vãs. Frutos de uma sociedade doentia e cheia de problemas irreais. Danem-se eles. Minha comida estava boa o suficiente para eu não dar bola para seus olhares maldosos. Fiz um brinde com o copo de água mineral. Lara retribuiu. A nos e que pudéssemos comemorar essa data por muitos anos. Ela era uma boa mulher que aturava minhas “beatniquices” e minhas “castañedices” e minhas esquisitices por todos esses anos. Aturava noites a fio de mau humor, insultos e bebedeiras. E sempre me perdoando. Até agora. Quando eu começava a discursar – bêbado e louco – sobre a miserável condição humana ela ouvia e não dizia uma palavra. Esperava o porre passar e mudava de assunto na manhã seguinte. Dava-me sugestões que poderiam melhorar meu texto. Dava-me sugestões que poderiam mudar minha vida. Nem sempre eu a seguia a risca, mas quando o fazia as coisas pareciam mais simples. Será que eu ainda estava apaixonado por ela? O sentimento era o mesmo de sete anos atrás? Eu não tinha dúvida e dizia para ela que a amava sem o menor constrangimento e um público. Oscar Wilde que vá plantar batatas ou arrumar outro Lorde veadinho e mimado nos quintos dos infernos. Continuamos comendo e sorrindo e conversando. Os outros comensais já deviam estar pensando em nos trucidar e devoravam seus pratos como uma matilha de cães sarnentos que não comiam a uma semana. Falavam de boca cheia e babavam. Eu somente observava com o canto do rosto e com um sorriso de pura ironia quando virava casualmente o rosto para fita-los em sua dor e infelicidade. Terminamos de comer e pedimos a conta que demorou outra eternidade. Fiquei matando minha garrafinha de Timbu. Agora Lara me falava de uma proposta de emprego que ela tinha recebido para trabalhar na assessoria financeira de uma grande corporação. Disse-lhe que seria ótimo e que eu estava muito feliz com ela e quando essa vaga se concretizasse poderíamos dar uma bela festa para nós e nossos poucos amigos íntimos. O garçom trouxe a conta e eu paguei com meu cartão de debito. Saímos do restaurante e eu guardei meu presente no bolso dianteiro esquerdo da minha calça jeans. Junto com meu MP3 cheio da musica psicótica que eu tanto gostava. Nos demos as mãos e fomos andando pela calçada.

De repente, gritos, alvoroço, agitação. Correria. Um moleque passou por mim como um azougue. Atrás deles vinham homens vestidos de branco, roupa de açougueiro pelo que me pareceu. E ouvi histéricos gritos femininos de “Assalto” & “Pega Ladrão, Pega”. Violência urbana. O garoto deveria ter feito um “cavalo louco” em algum estabelecimento próximo e se estrepado. Agora tinha virado alvo de perseguição. “Pega”, começaram a gritar os populares enquanto três homens com um baita fôlego continuavam em seu encalço. Paramos para ver o desfecho da situação. Começou a juntar gente. Normal. Pelo menos aqui na cidade é normal. Ninguém ajuda. Só querem apreciar o espetáculo. Meros espectadores. Com o valor mais ou menos de um monte peso morto que não tem nada a oferecer a ninguém.

A gritaria continuava e a perseguição também. O ladrão já tinha tomado certa dianteira quando um dos homens, o mais baixo e atarracado de todos, atirou-lhe um cabo de vassoura que estava encostado em uma árvore. Boa pontaria do cara. O cabo girou e de alguma forma enroscou-se as pernas do fugitivo. Esse caiu de cara de no chão. Deu inclusive para escutar o estrondo e estávamos a uns cinqüenta metros de toda aquela confusão. Alguns estudantes com uniformes escolares gritavam: “Pega!”, “Mata!”, “Lincha”! Estava armado o circo romano e isso não iria terminar bem. Lara ainda conseguia berrar “Calma” mas parecia que todos estavam tão enfurecidos e que não escutariam nem a voz do santo papa naquele maldito minuto. O ladrãozinho foi ao chão e sobraram, chutes, bicudos, murros, tapas, puxões de cabelo, roupas rasgadas e mais porrada e bordoadas e mais chutes. Parecia um cão de rua sendo açoitado. O moleque guinchava e pedia “pelo amor de deus”. Lara começou a chorar. Ela, neste ponto, era diferente mim. Achava que a humanidade ainda tinha salvação. Não muito. Lara se abraçou a mim chorando e dizendo que aquilo não era justo. Levei para mais longe e eu estava louco para ver como esse tumulto todo terminaria. Os estudantes engrossaram o coro e aí começou a rolar paulada, no sentido literal da palavra. Apareceram cabos de vassoura e pedaços e pau e ripas por todos os lados. Pareciam que a vizinhança tinha descido para rua e queria justiçar o ladrão a qualquer custo por ele ter atrapalhados seus afazeres e almoços.Parecia que agora o ser humano estava regojizando-se de felicidade. O couro comia. Eu queria perguntar a alguém o que tinha sido roubado. Não pude. Foi puxado pela Lara e entramos no primeiro táxi que passou. Ela ainda chorava e perguntava onde estaria a policia.

“Ora”, pensei com meus botões, “devem estar enchendo a boca de pasteis gordurosos ou de sanduíches de pernil. Afinal, é só nisso que eles pensam”.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 20/09/2010
Código do texto: T2509837
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