O POETA DA RUA XV

Ele não é utopia, nem uma lenda. É pura humanidade! O Poeta espia pela fresta da janela toda aquela movimentação. Ouve tiros, é mais um assalto na Rua XV. Barulho de sirenes, o vermelho escorrendo pelo fio da calçada, gente andando para lá e para cá, a rotina segue desprovida de sentimentos.

O Poeta, contudo, não se afasta da luz, respira fundo e entra na biblioteca em busca de seu poema preferido – “Lírios no Lodo”. Absorve cada palavra como um alimento, nutrição para seu viver. Aliás, as palavras sempre foram a matéria-prima de seu trabalho, a comida diária, a família, a paixão!

O Poeta da Rua XV mora num pequeno apartamento, desprovido do supérfluo (necessidade de muitos), porém, no teto, nos cantos, no chão, em todos os lugares há letras bailando ao som da musicalidade das palavras – há vida em abundância.

Pelo umbral da ousadia e da imaginação, ele adentrou no século XXI, misturando-se à engrenagem tecnológica, ao Projeto Genoma, as guerras ao vivo, aos escândalos da corrupção. Não se deixou abater. Porte altivo, corpo esguio, olhar de maresia. Desliga o computador, ainda olha-se no espelho, amarra os sapatos e sai.

A praça Cel. Pedro Osório parece com o Poeta – imutável e renovada, as raízes no passado, as copas vislumbrando um novo mundo. Ele sente o gelo no ar, retorna e pega seu cachecol marinho, pensa nas luvas, pois seus dedos não poderão perder os movimentos, são eles que direcionam as palavras. Indecisão. Sente que ainda é forte para caminhar conduzido pelas sensações do frio.

Os movimentos repetidos aquecem seu corpo, cada passo uma lembrança. Atravessa os simétricos paralelepípedos ali colocados por presidiários há décadas. Admira, talvez pelo último olhar, alguns prédios históricos da cidade. Tantos homens públicos por ali passaram, chega a ouvir e ver na sacada da Prefeitura, comícios antigos e empolgantes que ficaram congelados no tempo. Chegando à entrada da Biblioteca Pública, sente o cheiro característico de livros seculares e olha a clarabóia restaurada. Meninos de “piercing”, roupas largas e ruidosas risadas, com livros e mochilas, saem do prédio, fixando no olhar do Poeta, a realidade do tempo presente.

Mesmo cansado, ele segue pela Rua XV, e pára na esquina da Floriano para admirar o Teatro Sete de Abril.

A tarde era tão gélida como a de hoje. O jovem poeta dirige-se para o teatro para assistir uma ópera, pouca coisa percebeu tal era a beleza dela, superior à arte, superior à arquitetura do lugar. Foi amor, paixão, respeito, entrega. Certo dia ele disse: “Por essa mulher daria minha última gota de sangue!” O contrário aconteceu.

Um “trombadinha” tenta levar sua carteira. Ele é mais ágil e segue o andar dos passantes.

O som ao longe trás a sua lembrança, antigos carnavais. O Poeta vê cadeiras ao longo da Rua XV e o povo aplaudindo os blocos burlescos e as inesquecíveis Escolas de Samba deslizam diante dos seus olhos, com brilho e poesia. As lágrimas petrificam-se em sua face desenhada pelo tempo.

O frio é tanto que seus ossos parecem transformar-se em pó. É preciso um café expresso.

O cheiro, o sabor, a composição do cafezinho aquecendo sua língua, faringe e esôfago o deixam renovado e feliz. Está tão feliz que sente necessidade de compartilhar, mas parece que ninguém o vê. Os advogados ali presentes discutem suas questões profissionais; comerciantes, falam de vendas; aposentados, dos reajustes; os mulherengos falam de mulher. Ninguém mais fala de poesia, será culpa do terceiro milênio?

A necessidade de compartilhar chega a doer no peito. Ao colocar a xícara do cafezinho sobre o balcão, seu olhar cruza com o da atendente e ela sorri. O Poeta respira fundo. Ainda está vivo!

O homem sai. Esbarra num conhecido, tenta cumprimentá-lo, mas o outro nem percebe. Suspira fundo e lembra que precisa pagar as contas de luz e telefone. Retorna e vai até a Rua Sete de Setembro numa casa lotérica. Olha a sua esquerda e vê o artista, o “homem prateado”. Próximo ao chafariz das Nereidas ele encanta a todos com sua arte. O corpo todo pintado de cor prata, imóvel como estátua, ele faz seu trabalho. Com sol ou chuva ele interpreta o personagem; por momentos troca de postura, por horas, somente os olhos expressam vida. Os transeuntes jogam moedas para que o grande artista possa sobreviver. E o Poeta sente na pele seu próprio destino.

A tarde desmancha-se rumo ao por do sol, o entardecer o fascina. A claridade sai de cena, discreta e deslumbrante, cedendo seu lugar ao repouso, ao sono reparador. Ele continua sua caminhada pela Rua XV, tranqüilo, ainda há tempo para mais uma criação.

Sente o pensamento alçando vôo, rumo à liberdade dos pássaros, suas mãos tremem, há necessidade de papel e caneta. O processo criativo o transforma, o Poeta apressa o passo, quase a correr e não vê o carro em alta velocidade. O choque é inevitável.

O entra e sai dos enfermeiros confunde sua mente. Está imóvel e lúcido, precisa de papel e caneta, por que eles não compreendem?

Os poetas verdadeiros, em extinção, não conseguem partir sem registrar a sua última marca. Ele é teimoso e continuará, firme, falando com os olhos, até chegar alguém, ainda sensível que o compreenderá.

Quando algo tão simples, papel e caneta chegarem as suas ansiosas mãos, certamente ele alçará vôo, para dimensões mais humanas e mais poéticas.

Rosa Dias
Enviado por Rosa Dias em 01/10/2006
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