O Poeta Sozinho

Vim fazer o que me devolve à vida: escrever. Vim buscar o que não dizer. Entreter-me com o que achasse que descobriria. Talvez alguma magia eu pudesse encontrar. Saborear a soberania que algum dia eu pensasse que teria sobre mim mesmo. Melhor seria comer aletria, mas eu não saberia fazer.

Sinto que tem alguém no quarto. Não, no quarto não há ninguém. Só se me dispusesse a conversar comigo. O que acho meio sórdido. Embora não considere um castigo. Só que nunca chego a lugar algum.

Valdez se desfez dessa imagem e tentou melhorar o poema:

amo-te como o mote que preciso

pra te dizer que em tudo o que me envolve

tu estás...

Será necessário dizer o que ela já sabe? Mas o poema que se destina a alguém contém necessariamente uma fragilidade. Quando ele não tem endereço, torna-se mais forte. Qualquer uma pode achar que é pra ela. Pra quem será que escrevo? Será que é pra moça que há dentro de mim?

Valdez se desfez dessa imagem e se recusou a continuar com o poema. Pensou no frio incomum que estava fazendo no Rio. Não estava disposto a ter como interlocutor o Valdez número 2. Melhor achar que estivesse sozinho. Mas tal suposição seria inócua, na medida em que havia as palavras. E fora atrás delas que ele viera pro quarto. Então jamais estaria comodamente sozinho.

Valdez se desfez dessa imagem e voltou ao poema:

não preciso da consciência pra sentir

tua falta, mas preciso-te apenas,

até inconscientemente...

Nunca serei definitivamente romântico. Talvez seja mais didático. Acredito que meus textos possuam às vezes um caráter referencial, como as bulas de remédios, em que pese não haver uma abundância de termos incomuns ou jamais usados. Posso também ser existencial. O que na verdade todos somos.

Lembrou-se de que há muito não se resfriava. Não vinha tomando vitamina C todos os dias. As doenças sempre por perto. Qual a necessidade incontornável de terminar esse poema? Será que é porque não deixei nenhum outro pela metade? Sempre há uma primeira vez pra tudo. É o tipo da descoberta de qualquer babaca pouco original.

Valdez resolveu voltar ao poema, desprezando os versos anteriores e ficando com os seis últimos. Era preciso terminar porque já estava ficando com sono. E é sacanagem usar deste recurso pra dormir. Buscar as palavras pra poder dormir. Melhor tomar um copo de vinho. Pelo menos comigo tenho que ser honesto. Também um poema não tem que ser longo. Claro que há bons poemas compridos. Mas ninguém consegue deixar de se sentir atraído pela síntese. Acho que já posso fechar.

Então Valdez leu o que havia escrito e resolveu mesmo parar por aí. Depois arranjo um titulo. Titubeio em alguma coisa se for necessário.

Acho que agora já posso ir pra sala. Pra me sentir verdadeiramente sozinho. Tomo um copo de vinho e quando voltar pro quarto será realmente pra dormir. Não temia a sala, embora a presença da TV. Com sorte talvez achasse um bom filme. Um documentário. Desses que teimam em achar um otário cuja vida nos diga alguma coisa. De qualquer maneira, quando voltar não vou ler o poema (que ficara sobre a mesa, desistira de usar o PC).

Foi pra sala e deve ter se interessado pelo bang-bang antigo. Ao voltar pro quarto já tinha o título do poema: "falta-me a consciência".

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 15/10/2010
Reeditado em 22/10/2010
Código do texto: T2557291
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