Depois do Xadrez

Quando sai da cadeia não foi nada fácil.

O advogado tinha sugado todo meu patrimônio e ainda por cima fiquei mofando quatro anos naquele inferno cheio de todos os tipos subumanos que se possa imaginar. Todos os cães danados infestavam aquele lugar. Ócio total. Paranóicos, esquizofrênicos, psicóticos, psicopatas, ladrões, safados de todos os tipos, golpistas nacionais e estrangeiros e o imbecil do traficante aqui. Malandro que é malandro tira cana na sua e não reclama. Bom cabrito não berra, já dizia meu finado pai. Talvez o único momento interessante lá dentro foi quando chegou um estuprador em série que tinha inclusive aparecido escrachado no “Fantástico” e que tinha fotos de jornal da sua cara feia por toda a galeria. A bandidagem estava no veneno com o pobre diabo e já tinha avisado que se ele caísse no nosso presídio iria ficar menos e uma semana vivo. Não deu outra. No dia em que o cara chegou foi aquele sururu. Estuprador, alcagüete e latrocída no xadrez nunca tiveram vez. É porrada, bordoada, paulada, chutes ,socos, pontapé, violações, choque elétrico com fio desencapado, merda, mijo, suor, esperma. O infeliz pede para morrer, implora, mas só chega sua hora quando a marginalidade quiser. Vão cozinhando o galo ao sabor do vento. Quando a “faxina” acorda com a bunda descoberta aí sim o filho da puta vai ter seu encontro com a morte. O bicho durou quatro dias. Eu não participei da “festa”. Se arrumar outro crime atrás das grades não sai nunca mais. O pior é que cadeia é democrática. Participa do agito quem quer. Eu só me dava relativamente bem lá dentro porque meus contactos da rua sempre me abasteciam com maconha e cigarros que são a moeda corrente. Não me envolvo com craque. Nem em liberdade eu fazia isso. Prefiro erva e pó porque apesar de renderem menos hoje em dia não é tanta sujeira e não precisa ficar matando os devedores todo dia. Economia na bala também.

Na verdade caí por um delito menor. Agressão e lesão corporal grave. Fui cobrar uma divida e peguei pesado. O pai da “vítima” deu queixa e os ratos descobriram que eu tinha um mandado de prisão expedido contra mim que o juízo ainda não tinha tido tempo de cumprir e acabei vindo parar aqui. Quatro anos. Merda de vida! Caí fora do casarão com uma mão na frente e outra atrás e praticamente a roupa do corpo. Voltei para a vila, mas o comando era outro. Puta que pariu. Traficante respeitado que tomou pau e não entregou nenhum dos irmãozinhos e puxou sua etapa sem incomodar ninguém agora estava mais por baixo que cu de sapo. Essa é vida dura cruel. Sai da frente que atrás vem gente, já dizia minha saudosa mãezinha. Resolvi ir viver em pensionato e pagar diária no centro da cidade com os parcos tostões que tinham me sobrado das jogadas de fumo na prisão. Não era grande coisa. Consegui um quarto perto do SESC da Esquina. Logo no início da cracolândia curitibana! Era só o que me faltava...

Pelo menos tinha um boteco a duas quadras dali e não quando cheguei vi que seria difícil encontrar ambiente ali. Sou de outra geração e fica difícil conviver com esses novos viciados. Quando eu era piá sempre escutava os velhos dizerem que se você usar drogas fica viciado e sua vida gira somente em torno disso. Com maconha, cocaína e até boletas não é bem assim. Você tem que insistir muito até criar o hábito e não morrer de overdose antes. Com o craque é ao contrário: fumou, doidão, tá pego, tá fissurado, tá “noiado”. Já vi neguinho morrer lá na vila por um cisco de pedra e trinta reais. Na verdade é culpa desses vapores amadores que ficam vendendo fiado prá moleque e aí tem que se virar porque o patrão está cobrando. Ameaçam a família, matam o irmão mais novo ou até a avó até chegar ao devedor. Virou bagunça. E os tiras levam o deles e não metem a mão. Só mandam o rabecão vir buscar o presunto. Quanto aos tiras isso não vai mudar. Você pode até alegar que isso é corrupção pé-de-chinelo. E não passa disso mesmo. Cansei de colocar dez ou vinte mil dólares na mão de soldadinho da PM para eles ficaram uns três ou quatro meses longe da minha boca. Passado o prazo lá estavam os mesmos porcos mordendo de novo. Fazer o quê? Puxei cana na real porque o juizinho era um novato metido a besta querendo mostrar serviço. Mas o dele está guardado. Não tenho pressa. Uma hora ou outra eu cruzo o capa preta e mostro prá ele quanto dói uma saudade. Não vou encher de pipoco. Sem afobação. O boyzinho mimado vai sentir muita dor e vai morrer lentamente como o filho da puta que é. Deixa prá lá. Isso não é coisa que se comente. Eu precisava me levantar da pindaíba que eu me encontrava.

Encostei-me ao balcão e pedi conhaque do presidente. O atendente até sorriu e me disse obrigado quando paguei os dois reais. Eu tinha agora só 136 pratas no bolso. Eu era o homem de cento e trinta e seis mangos e ainda teria que pagar a diária de hoje e de amanhã que eu quisesse dormir numa cama e não na calçada gelada. Não tinha como fazer ambiente ali e foi só então que percebi que estava zerado, sem cigarros. Tive que comprar um maço. Quatro pilas. Vai fazendo a conta aí. Pedi outro conhaque. Queria beber. Precisava beber. Negocie com o cara do balcão ele me vendeu um litro lacrado por quinze. Exploração. Mas fazer o quê? Ex-presidiário não tem vez nem no colo do capeta. Você entra burro e revoltado e sai louco e mais revoltado ainda. Esse é belo sistema que o “cidadão que bem” quer conservar. Pois sim. Depois o burguês não sabe por que o filhinho marmanjo tá atolado até o pescoço em drogas. Vem cá mais pertinho que eu vou te explicar com uma nove milímetros apontada para o seu rostinho bonito. Eu precisava ganhar dinheiro o mais rápido possível. Precisava me virar. Precisava voltar a ter um lugar para morar com dignidade. Precisava comer. Todo mundo diz que o rango da cadeia é uma merda. Pode até ser, porém não te deixa morrer de fome. Só que eu não quero voltar para lá. Não tão cedo. Prisão não reabilita ninguém. Será que esses engomadinhos não conseguem perceber isso? Não que queira arrumar um emprego. Nem a pau. Só que você sai de lá pior que entrou. Você não tem mais nada a perder depois que sai. Por isso alguns voltam mais rápido que saíram. Ou acabam encontrando-se novamente com suas desavenças e amanhecem com a boca cheia de formiga. Virei mais um trago de conhaque do meu litro e pedi para o atendente guardar até eu voltar que eu estava morando na vizinhança e patati e patatá. Ele concordou e eu ganhei a rua. Fui caminhando em direção ao centro velho. A cidade não tinha mudada nada. Ou melhor, tinha mudado para pior. O cheiro de esgoto era onipresente, os craqueiros andavam com seus cobertores nas costas abordando os transeuntes apavoradores. Os transeuntes eram um bando de roedores covardes até mesmo com suas próprias sombras. Queriam conservar seus parcos bens materiais. Os carros - todos novos - pareciam andar cada vez mais velozes e sem cuidado. É muito estranho voltar para a rua depois de quatro anos. Eu andava no meu passo apressado e atento. Um mendigo me pediu dois reais para um trago. Mandei-o tomar no cu no ato. Agora esmola tem tabela, porra? Precisava de um telefone celular e uma pistola. Tinha que me virar. Como? Eu pensava. Quem pode me ajudar a me levantar? Era o que eu queria saber.

Encontrei um conhecido comendo um cachorro quente tradicional na rua XV. Ele falou para eu sentar e pedir um chope. Eu não estava com boa aparência, ele disse. Explique que tinha acabado de sair da cadeia e até então só tinha conseguido um quartinho infecto e uma garrafa de conhaque. Ele me ofereceu uma força. Tinha dois quilos da diamba da melhor e queria passar para frente. Topei no ato. Fui até o seu apartamento e provei da erva. Coisa boa. Daria prá vender fácil, fácil. Desci até a rua e comprei uma mochila baratinha e bem grande para transportar a erva. Perguntei quanto ele queria e quando deveria pagar. Deu-me uma semana. Ótimo. Tempo de sobra. Coloquei as pacoteiras na mochila, agradeci, me despedi e zarpei dali. Voltei para a pensão e no caminho comprei uma faca de cortar carne. Deveria dar e deu. Cortei os quilos em tacos de cinqüenta, cem & cento e cinqüenta gramas. Fiz também umas trouxinhas miúdas para vender mais rápido e vou logo para o Largo da Ordem ali perto.

Tinham uns estudantes universitários tomando cerveja e falando alto no barzinho em que sentei e pedi cerveja. Fiquei que olho na conversa deles. Todos maconheiros. Não seria difícil vender algum. Quando me olharam eu perguntei se alguém estava a fim de fazer a cabeça. Os dois que pareciam lideres da turminha quiseram conferir. Mostrei-lhes a mercadoria. Eles quiseram provar. Enrolei um rapidamente com a folha de um caderno que me deram. Um verdadeiro Havana de erva. No terceiro pega já estávamos loucos, rindo e fazendo amizade. Perguntaram quanto eu poderia dispor naquele momento eu disse que tinha cem gramas no peso ao preço de um por um. Disseram que por essa qualidade tinha gente passando a cinco por um. Excelente dica. Eu iria vender mais barato para arrecadar freguesia. Afinal sou um profissional do ramo. Nunca fiz outra coisa na vida, oras. E eu sempre fui bom no que fazia. Todos os trabalhos têm seus reveses e o meu não era diferente.

Eu via luz no fim do túnel. Eu estava de volta ativa. Sabia que iria me levantar novamente. Era só questão de tempo...

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 19/10/2010
Código do texto: T2566143
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