Olhos felinos.

Era o fim do horário de pico na naquela casa. Após o agitado corre-corre do final de tarde a paz retorna e cada um se refaz a sua maneira.

A porta do quarto se encontra entreaberta. Alheia a tudo, ali deitada na cama, ela mostrava sinais de despertar daquele sono improvisado da tarde. Era uma madorna, um estado de vigília de onde se podia ouvir e sentir tudo o que acontecia ao redor. A fronha macia e colorida e os pôsteres na parede formavam uma decoração exótica. Movendo lentamente as pálpebras foi descortinando a penumbra do quarto mal iluminado. Os olhos azuis se esforçavam para diferenciar os móveis e só com a total dilatação das pupilas foi possível fazer o reconhecimento do cômodo. O coração foi se acelerando e, com grande esforço, num longo espreguiçar fez distender toda a coluna vertebral juntamente com os membros superiores e inferiores. Bocejando se levanta. Bastou um olhar para a janela e foi possível sentir que a noite já ia alta e não chovia. A cortina permanecia estática - mesmo com a vidraça aberta -, prova que a calmaria reinava do lado de fora. Pelo corredor dava para ouvir os ruídos que vinham da sala de estar. Ainda sem muita disposição e caminhando lentamente foi até a cozinha. Sem cerimônia beliscou algo aqui e ali. Os pratos e talheres estavam amontoados na pia. Havia resto de salada na travessa, ossos sobre a toalha de plástico, uma desordem; pudera, a família estava reunida em seu principal ponto de comunhão diário: o “seriado das oito”. Deixa a cozinha. Não vai jantar. Arrotos expõem o resultado da mistura de petiscos que provou no decorrer da tarde. Ao cruzar pela sala notou que as pessoas estavam em silêncio diante da tevê. Ela, por não gostar de drama ensaiado ignora e, passeando por sobre o tapete árabe, ganha o terraço.

A brisa noturna traz sinais de poluição. Pairam no ar odores estranhos que, no inverno, intensificado, irritam os olhos, os pulmões e toda a flora ali estrategicamente distribuída e confinada nos vasos.

Acostumada com a rotina estafante solta a imaginação, mas tudo é incerto. A noite reserva mistérios. As trevas são próprias para seus habitantes. Nos seres diurnos a escuridão acentua a sensibilidade, enaltece a libido e pode provocar sentimentos confusos; portanto, embora anseie conhecer essa área, não ignora os riscos. Aproveitando-se da paz ali encontrada, agarra firme nos balaústres coloridos do terraço alongando toda a coluna vertebral. Em seguida se contorce de forma suave movendo os músculos peitorais, lombares e das pernas. Preguiçosamente volta pra sala. Outra vez não é notada. É hora de se preparar e um demorado banho é essencial.

Inicia pela testa, cuida das narinas, dos olhos, das orelhas e da nuca. O cartão de visita está pronto. Boa expressão é fundamental e os olhos e as sobrancelhas transmitem emoções; além, é claro, de serem essenciais à percepção e a proteção.

Retoma a viagem. Agora, pelo pescoço descendo até as unhas e retorna. Reinicia pelo lombo, viaja pelas vértebras passando pelas nádegas e prolongando pelo lado esterno das coxas até os pés. Vira de lado e subindo por outra perna alcança novamente a nuca. Agora, de costa, fita o teto e ele vai ganhando cores. Nele, aos poucos vão sendo projetados os seus desejos. Por ser jovem muita coisa a inquieta. Desconhece a fome, a solidão e, por gozar de extremo conforto, ignora o temor pelas adversidades, os terremotos, os temporais e os invernos rigorosos. Sempre amparada, seu íntimo impele a buscar novas descobertas, a desvendar certos mistérios que a incomodam. O instinto a chama, a comodidade a cansa. Há coisas mais interessantes para se conhecer além do conforto reinante entre as quatro paredes. Os estímulos naturais de reprodução já manifestam trazendo brilho no olhar, odores excitantes e as glândulas trabalham intensamente inundando o corpo com os hormônios próprios do sexo. É visível sua agressividade contida intercalada com extremos atos de carinhos; mas, antes de tudo, é imperioso aprimorar as defesas, treinar os ataques, conhecer os desejos e só então permitir que o véu se rompa para que possa descobrir as regras do velho mundo, mas em sua ótica! Nele a dor, o medo, a morte na noite estão à espreita, mas quem não ousa na adolescência torna-se receoso. A vivência diária desses desafios dá aos aprovados a uma vida rica de acontecimentos. Respira fundo. É isso que ela quer conhecer e retorna o banho. Com toques suaves - mas decidido - acaricia o queixo descendo pela garganta, o colo, mas é interrompida por ruídos nos apartamentos, pessoas conversando em tons elevados, alegres; foi só um momento. Sentindo-se novamente segura, corre delicadamente as unhas sobre os mamilos virgens passando pela barriga que mostra sinais de gorduras resultante da vida sedentária que leva. Isso não a incomoda e, elevando as pernas ao alto as vem acariciando, lentamente, uma e outra, apreciando a maciez dos lados internos das coxas chegando até ao púbis onde cuida generosamente da fina plumagem ali existente. É hora de uma nova retocada por todo o corpo, costa, orelhas e permanece relaxada.Pouco depois já caminha pelo corredor em direção ao quarto.

Que horas seriam?...Não importa.Quase oculta pela claridade do néon a lua vai alta e próxima da cheia, o que justifica o furor interno na inquietante explosão da libido que pulsa por todo o corpo. Na sala houve dispersão geral. Há ruídos de pratos sendo enxaguados na cozinha e conversa descontraída nos quartos.

As horas de sono roubadas na cama de sua dona foram relaxantes. Estando no terraço, sentada no parapeito com a cauda contornando sua anca, língua cansada, os pelos siameses alinhados e com as orelhas na vertical, fixa os olhos felinos na cidade que aos poucos vai se acomodando. Contempla longamente o horizonte e, voltando-se para o lado, vê a escada de emergência que é próxima da sacada. Quando chegar a hora, basta ultrapassar o parapeito, equilibrar-se pelos detalhes arquitetônicos, entrar pela escada, ganhar as ruas e, com instinto de aventureira, invadir a noite...

Enquanto a cidade dorme é a hora dos gatos irem à caça.

Menção Honrosa na fase regional, da região Central, do Mapa Cultural Paulista de 2005, em Poá.

Concorrente do prêmio Afonso Duarte, de Montemo-oVelho, em Portugal, em 2006.