domingo

Levantara quase ao entardecer. Era domingo. Os minutos desciam dentro de um conta-gotas imaterial. Usou duas horas do dia para rearrumar seus papéis, velhas contas de luz, o almoço. Fácil digestão.

Encostada ao pé da porta, sobre o tapete chileno esgarçado, a gata Juliana permanecia muda, obtusa e naturalmente cinza. Todos esses anos juntos e ele já não distinguia sua cor, mas era cinza.

Os domingos, porque não passam, porque não cessam, são sempre enigmáticos e inúteis. Pode-se perdê-los num chá-verde, num copo de leite, num filme repetido ou num patético programa de auditório. Sem falar nos jornais, promoções imperdíveis. Sendo então este dia o domingo e, irremediável transpô-lo, só restava esperar.

Parece incrível, mas embora fosse mesmo domingo, um pequeno incômodo chegou a atordoar Fábio no meio do segundo gol do Grêmio, cobrança de escanteio aos 42 minutos do segundo tempo.

Ainda com a janela fechada, ele ouviu o relincho agoniado de um cavalo novo, podia vê-lo lá no meio da cerração que descia sobre a rua e ofuscava as luzes amarelas do poste. As tulipas vermelhas da praça, agora rosadas; os canteiros de ferro verde sucumbindo à densidade da névoa. Não estava tão frio quanto parecia. Perto dos brinquedos de sisal, o animal desamarrado experimentava a solidão.

Fábio abriu a janela, dispensando os três minutos finais de jogo. Abandonou três quartos de aveia morna e chegou o mais perto que pôde da cena que se desenrolava lá fora. Dentro dele um vazio imperceptível. A umidade do vidro, o sussurro seco e afiado do vento, canteiros, morros, todos invisíveis.

Na Praça não havia mais ninguém, os vizinhos debaixo das cobertas, as crianças agoniadas em casa. Nas cabecinhas inclinadas e sustentadas pelas pequenas mãos, um desejo: que a chuva parasse logo e houvesse tempo necessário para uma última brincadeira.

Noutro plano um instante íntimo, o cavalo e Fábio. Um animal que não pensa de onde veio, um animal na doce desconfiança de sua origem celestial.

Uma dúvida, um abandono momentâneo. O que olha da janela não tem noção do que lhe falta. Receia ter tudo, afinal.

O bicho marrom, um pouco fustigado, castigado pela escassez de comida, pelo habitat inatural, parece até uma criança, dessas que estão trancadas em casa. Olhos sonolentos perscrutam o tudo ao redor, a ferrugem. As quatro patas já tremem o frio da noite que se aproxima. Não sabe para onde ir, nem o que tentar.

Fábio, da confortável posição de seu apartamento não investiga uma possível dor. Alisa o acolchoado camurça e planeja mentalmente a troca da mobília.

O cavalo arranha a terra fofa, balança algumas vezes a cabeça para os lados, como quem não acredita. Não imaginou que a liberdade era também, dúvida. Ainda insiste, inclina o dorso, espreme um olhar sofrido.

Já Fábio desiste da aveia, joga o resto (já frio) na pequena lata de lixo acrílica no canto da pia e apanha uma banana ainda de vez no cacho.

O bicho de fora treme. O de dentro esquece. A névoa agora se dissipa lentamente, a noite vai chegando, caindo, vazia e besta como em todo domingo de chuva. O cavalo e Fábio nunca mais se reconhecerão.

Jan Morais
Enviado por Jan Morais em 10/10/2006
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