O velho e o menino

Ozório sempre quis ser rico. E tinha certeza que seria. Já fizera, diversas vezes, os planos sobre como gastar a fortuna: compraria uma grande fazenda bem sortida e banhada por um rio piscoso, viajaria pelo mundo todo, teria uma casa perto do mar, uma dúzia de carros e muitos objetos de ouro. Ele ria sozinho ao imaginar o espanto do vendedor da concessionária ao vê-lo todos os meses comprando um novo carro. Também jantaria em restaurantes caros e nem avaliaria os preços dos pratos. Sua casa principal teria vários empregados, três andares e muitos quartos. Estaria sempre rodeado de pessoas. Seriam todos bajuladores, é verdade, mas isso não importaria.

Ozório é pobre, muito pobre. Durante boa parte de sua vida, trabalhou em grandes fazendas; algumas banhadas por rios, nos quais quase não pôde pescar em razão da rotina pesada. Já dirigiu muitos carros, trabalhando de motorista de “gente importante”. Tem um dente postiço de ouro, única herança dos tempos em que buscava a riqueza nos garimpos. Tem o costume de juntar trocados para comer em alguma lanchonete popular. Mora sozinho em um quartinho alugado.

- Não foi dessa vez, Seu Ozório? – a pergunta vinha sempre da moça magricela do caixa três. Era a mesma que dizia há anos: “quando o senhor ganhar, não se esquece dos amigos pobres, hein?”. A cena, de tão repetitiva, já não mais irritava o velho. Mas irritação com os intrusos apostadores permanecia. Na sua cabeça, o prêmio da riqueza deveria ser apenas seu. Era o lógico, o justo. As outras pessoas – todas amadoras na corrida por fortuna – não mereciam ser contempladas com o que ele procurava desde sua juventude. Sempre que ouvia notícias e comentários de novos milionários, ficava irritadíssimo. “Era pra ser a minha vez”, resmungava para si mesmo.

- É, não foi dessa vez – respondeu Ozório para a moça magricela. Depois, saiu da lotérica sem fazer aposta. Sabia jogar: apostas devem ser feitas às quartas e sextas e as conferências de resultados às segundas. Era assim há anos e deveria continuar sendo.

Aquela segunda-feira, no entanto, não seria como as outras. Ao deixar a casa lotérica, Ozório viu um menino do outro lado da rua. O garoto, que estava de costas, virou-se e olhou direto nos olhos de Ozório, assim que o velho saiu da lotérica. E o olhou com reprovação. Ozório sentiu um frio em todo o corpo. Fez um sinal da cruz mecanicamente e desviou os olhos da criança, que aparentava ter seus sete ou oito anos.

O velho seguiu pela calçada segurando, firme, o saco plástico, dobrado diversas vezes, que envolvia algumas notas de reais, documentos pessoais, faturas e um cartão bancário. Ele nunca teve uma carteira, pois julgava ser algo supérfluo. “Qual a utilidade de uma carteira se dinheiro e documentos podem ser guardados em um saco plástico?” – essa era a lógica de Ozório para evitar dispêndios com “objetos dispensáveis”. O dinheiro economizado nas compras era fartamente empregado em jogos. Quando ficasse rico, pararia de jogar e compraria tudo que quisesse; teria, então, um amontoado de coisas desnecessárias.

Ao chegar ao bar, Ozório desenrolou o saco plástico e sacou dois reais. Chamou o mesmo rapaz gordo e baixinho das segundas-feiras. A pergunta também foi a mesma:

- O de sempre, seu Ozório? Era o de sempre: pão com margarina e café. Ozório tinha vontade de sentir o sabor de uma torta de coco com uma cereja de cobertura – ele sabia que era coco, pois perguntara certa vez, apenas por curiosidade. Mas só um pedaço da torta custava cinco reais. Era muito dinheiro para o café da manhã.

O velho quase deixou cair o café ao rever o menino. De novo, os olhos se cruzaram. Dessa vez, o garoto já não olhava com ar de reprovação. Estava sentado sozinho e parecia ter muita fome. Poderia ser seu neto, mas Ozório não tem filhos (na juventude, estava mais interessado em trabalhar; depois de velho, já não via mais sentido em ter esposa e filhos). Ozório pensou, por alguns segundos, em usar outros dois reais e alimentar a criança. Mas lembrou-se da aposta de quarta-feira. Resolveu desviar os olhos do menino. Terminou o café mais rápido que de costume.

Seguiu para o banco, pois era dia de pagamento da aposentadoria. Entrou na fila preferencial. Refez os cálculos: 35 reais para a água, 52 para a luz, 70 para a compra no mercado, 120 para o aluguel. Dessa vez, ousaria: iria gastar 80 reais em todas as modalidades das apostas lotéricas. Afinal, já não tinha muito tempo. Logo, logo morreria. “Mas não vou pra cova sem antes ficar milionário”, pensava.

- Bom dia, seu Ozório – era a voz familiar da mesma mulher morena de meia idade, de cabelos bem penteados, perfumada e de sorriso fácil.

- Bom dia, moça – disse Ozório, tentando ser galanteador.

Ele desenrolou o plástico, de onde tirou o cartão e as faturas de água e de luz. A mulher dançou os dedos longos sobre o teclado, digitando números com rapidez venerada pelo velho. Entregou o dinheiro e devolveu o cartão. Ozório tornou a desenrolar seu saco plástico e guardou seus pertences.

Ao deixar o banco, Ozório teve a certeza de que era seguido pelo menino. Dessa vez, o garoto, que estava à porta da agência, sorriu ao mirar nos fundos dos olhos do velho. Ozório devolveu o sorriso. Os dois se olharam por alguns demorados segundos. O menino notou detalhes na face octogenária de Ozório: a pele era clara, ressequida e flácida; os olhos, cansados e semicerrados; as sobrancelhas, brancas como os ralos cabelos.

- Como é seu nome, guri?

- Ozório Bento da Silva Dias.

O velho se espantou. O silêncio tornou a falar pelos dois. Olhando ainda mais perto, como se quisesse decifrar o mistério da criança, Ozório insistiu:

- Como disse que é seu nome?

- Ozório Bento da Silva Dias.

- Você só pode estar brincando. Como pode ter o meu nome?

O garoto ficou quieto. Também parecia estar perplexo. O velho continuou sua sabatina:

- Quantos anos você tem?

- Oitenta e sete.

Nesse momento, já se formava uma pequena multidão ao redor do velho. Alguns achavam graça do homem perguntar e responder para si mesmo. Outros, mais sensatos, tentavam ajudar.

- O senhor está bem? – perguntavam.

Ozório só tinha olhos para o menino à sua frente.

- Como pode ter oitenta e sete anos se ainda é uma criança?

O menino não respondeu. Mas lançou a pergunta evitada por Ozório:

- Se sabe que a morte está próxima, por que ainda insiste nessa besteira de ficar rico?

Velho e menino se calaram.

Ozório perdeu o menino de vista. Assustou-se com a multidão de intrometidos em sua volta. Mas sentiu certa calma ao ser ajudado pela mulher morena do banco.

- O senhor está bem, seu Ozório?

- Tô sim, moça. Fico agradecido. E o menino, você viu ele?

- Que menino?

Ozório não respondeu. Olhou para as pessoas em sua volta. Todos eram mais jovens. Todos, cheios de vidas que germinavam mortes.

- Eu não sei o que responder pro menino.

- Que menino?! Seu Ozório, o senhor não está bem. O senhor quer alguma coisa? – perguntou a mulher do banco.

O velho não titubeou. Desenrolou o saco plástico e tirou cinco reais. Guardou a nota no bolso. Deu um sorriso de liberdade e, já retornando de onde viera, respondeu:

- Quero sim. Quero comer uma torta de coco.

Osvaldo Júnior
Enviado por Osvaldo Júnior em 18/11/2010
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