Laurinha
 
...essa luz de repente!... as cortinas e a janela foram abertas pela minha mulher. Procuro embrenhar-me com a cabeça sob o travesseiro mas ela dói. Cubro-me com o lençol dos pés à cabeça, porém não consigo adormecer novamente. Percebo agora que minha mulher saiu do quarto e ouço agora a TV em volume alto junto com a algazarra de minhas filhas desde a sala. Não sinto equilíbrio ainda para manter-me sentado, o que dirá ficar em pé, descer as escadas e pedir para diminuir o barulho e a cabeça dói. Vou manter-me quieto e quem sabe adormeça... Tenho a impressão de ouvir o carro sair e creio que minha mulher está levando minhas filhas para a escola: enfim silêncio na casa! Arrisco levantar-me e meio zonzo vou até o banheiro, pego um analgésico (por que anal? ...gésico?... não poderia ser cabeça.. gésico?... o humor ajuda a livrar-se das dores, dizem!). Enquanto engulo o comprimido me olho no espelho para identificar outros danos. Os olhos estão vermelhos sob olheiras pesadas... melhor voltar para a cama pois estou tonto.... Desperto dessa vez por conta do cheiro de produtos de limpeza. Mas que diabos! Hoje é quarta e minha mulher limpa a casa sempre, religiosamente, nas quintas! Isso está me fazendo ter enjôos novamente e tenho que correr até o banheiro... Pronto! Que alívio! Depois de ficar acocorado junto ao vaso sanitário tento manter-me de pé e essas pernas fracas vacilam... volto para o quarto, fecho as cortinas e embrulho-me no lençol... Esse barulho é... é o aspirador maldito! Aquele analgésico mostra-se anal mesmo e corro para o banheiro com o estômago revirado e o intestino solto enquanto minha cabeça dói ainda... Agora um banho gelado acho que ajuda. Ah! Consigo até pensar embora o ruído do aspirador de pó continue. Hoje é feriado na cidade onde trabalho (uma das curiosidades de morar na região metropolitana é morar numa cidade e trabalhar em outra). Por isso aproveitei para reunir os amigos na noite anterior aqui em casa mesmo. Bebemos aquele bocado para matar as saudades dos tempos de gandaia. E o Lima fez jus ao apelido ("lima-nova" que ficou só Lima mesmo!) comendo quase todos os salgados que reunimos. Mas agora tenho aquela sensação de arrependimento por haver exagerado, novamente. Mas eu tinha direitos! Havia muito tempo que não 'bebemorava' com os amigos entre papos atrasados. Ainda meio zonzo saio do banheiro após enxugar-me e já no quarto coloco uma roupa confortável. Minha mulher está com aquele aparelho ruidoso no quarto das meninas. Aproveito para ir até a cozinha. Nada pronto no fogão, nem na mesa e nem na geladeira. Entretanto nessa há alguns pedaços do queijo de ontem, engordurados pelo azeite e temperados fortemente com pimenta do reino (o Zuza é exagerado!). Fazer o quê? Levo o prato até a mesa, sento-me e arrisco uma mordida... puá! está azedo e fico enjoado outra vez! Corro até o banheiro e alivio-me de um estômago vazio. Mesmo sem coragem de sentir o cheiro daquilo, esvazio o prato na lixeira. Não há café e então vou fazer a minha receita forte. Enquanto a água ferve vou administrando a quantidade do pó marrom no filtro de papel. O barulho do aspirador de pó cessou e ato contínuo minha mulher está em minha frente encarando-me. Por causa da cabeça atrapalhada consigo apreender apenas trechos do que ela diz: ...responsabilidade... pai de família... uma vergonha... não está nem aí... está achando que aqui é hotel... Até que uma pergunta aumenta minha adrenalina e, repentinamente, entendo uma frase inteira: "Quem é Laurinha?"... Laurinha, ah! Laurinha! quando ela passa pelo portão da fábrica em direção à administração deixando um rastro de perfume suave, balançando as cadeiras, com saltos altos destacando as pernas roliças e fazendo sonhar com o que há por trás daquelas saias, todo ser humano macho que está próximo da portaria acompanha o caminhar dela até ela desaparecer nas portas da diretoria. Como iria eu (ou outro qualquer) 'esclarecer quem é Laurinha'? De repente, minha mente sobressalta-se: como minha mulher soube que Laurinha existe? Comecei a tossir, uma daquelas tosses secas. E a pergunta dela se repete com mais vigor: "Quem é essa vaca chamada Laurinha?" Sinto que qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, que dissesse só iria complicar mais a pergunta. Mesmo assim arrisco responder com uma pergunta: "Laurinha? Que Laurinha? Do que você está falando?" Não se passaram dois segundos e em fúria ouvi de minha mulher: "Você me chamou de Laurinha quando enfim deitou-se na cama! Depois que adormeceu ficou dizendo com sorriso nos lábios 'Laurinha, vem cá Laurinha'!" Repentinamente tudo se escureceu... Reanimado, com soro injetado na veia, ouço o médico falar para minha mulher: "Foi apenas um desmaio provocado por situação extrema de estresse. Hoje mesmo estará em casa."... gostaria de ter morrido...