VIVER

Adriano chegou exausto do trabalho. A cabeça estourava de dor. O dia fora árduo, como o eram todos, aliás. Quinze anos naquele mesmo emprego maçante em troca de uma sobrevivência “digna”: apartamento, carro, as coleções de DVD, motéis, seu apreciadíssimo Drakkar Noir... Com mais de trinta anos, não havia se casado. E provavelmente, jamais o faria. Bem gostava de sua liberdade solitária. Morar sozinho era a glória!

Tomou logo um analgésico e sentou-se no sofá, com os olhos cerrados. Graças a Deus, a inseparável cefaleia passou rápido dessa vez!

Resolveu assistir de novo ao “A igualdade é branca”, o seu preferido da Trilogia das Cores, de Krzysztof Kieslowski. O ator Zbigniew Zamachowski simplesmente o encantava!

Mas não! Estava cansado demais, não conseguia concentrar-se. Desligou o aparelho de TV e foi até a janela. Os detalhes do seu dia revisitavam, insistentes, sua memória. Aquele novo diretor, tão pretensioso e idiota, a proferir ideias fraquinhas como se fossem as mais geniais da humanidade! Quanta estupidez! E o pior: ele, Adriano, se viu falando por mais de uma vez: “grande ideia, chefe”. Era dilacerante a vergonha que sentia de si!

Bom profissional, conhecia a fundo seu ofício e sofria muito com a convicção passiva de que o banalizavam. O novo diretor, bem como os mais de vinte patrões, através de atitudes mal mascaradas, martelavam a todo o tempo em sua dorida cabeça: “Nós somos geneticamente superiores a você”.

Debruçado na janela, repetia com desespero: “Que vida! Que vida! Que vida!”. Céu sem estrelas, a noite estava ainda mais negra. Ia chover. Ali, do segundo andar, via tudo “de cima” e isso o agradava. Mas resolveu descer.

A chuva iniciava-se em grossos pingos. Alheio, sentou-se no meio-fio. É, estava muito difícil, a angústia o corroía por dentro. E chorou aos soluços, como um menino assustado!

De repente, um cão vira-lata aproximou-se e começou a lambê-lo. Ele acolheu, carente, aquele mimo. Aprendia com o animal, que não sabia o que era a vida, simplesmente vivia. E pensou: “Irracional? Mas o que é ser racional? Este constante embaraçamento em teias viscosas produzidas por mim mesmo ou nas quais permito que os outros me prendam?”

Levantou-se e pôs-se a correr, brincar com o cachorro, que saltava e latia feliz, abanando a cauda. Os dois seres celebravam a chuva, pisando nas poças, voejando suas gotas prateadas. Livres, fraternos, na mais esplendorosa alvura da igualdade! Naquele momento, não havia mais emprego maçante e diretor imbecil; tampouco precisava de seus perfumes, coleções e grifes para sobreviver dignamente. Naquele momento, Adriano experimentou, depois de tanto tempo, como era simples estar vivo de verdade.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 07/12/2010
Reeditado em 17/03/2014
Código do texto: T2657868
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