Como Produzir Um Texto Gonzo

Eu estava quieto no meu canto, como sempre.

E é sempre que fico na minha é que acontecem os desastres.

Nem preciso começar dizendo que eu estava indo para aquele emprego idiota que odeio.

Naquele ônibus parecia que o motorista estava carregando uma vara de porcos. Fazia barbeiragens grotescas arriscando a vida de todos nós. Aumentava a velocidade de forma vertiginosa. Em compensação tinham algumas gostosas por ali para ficar apreciando. Se fosse para morrer na mão de um larazento qualquer melhor morrer pensando em putaria. “as pernas daquela ali são muito longas e lisas e da outra mais prá lá são meio finas, porém tem uma boa bunda e os pezinhos sensuais e delicados daquela morena mais na frente, eu poderia lambê-los por dias seguidos ou os peitos daquela lourosa oxigenada mais adiante então?” As ditas “cantadas de pedreiro” me fazem rir. Uma das poucas coisas que me fazem rir.

Finalmente sobrevivi ao chofer amalucado do coletivo e me dirigi até o suntuoso prédio onde se instalava aquele pasquim indecente que me pagava o vinho seco e os cigarros, o condomínio e a prestação da máquina de lavar roupa que eu tinha comprado à crédito num magazine com cara de estelionato e apropriação indébita. Fazer o quê? Se alguém me sugerir alguma saída coerente juro que vou seguir esse conselho. Acendi o segundo cigarro do dia para poder subir pelo elevador. As pessoas passavam por mim com expressões furiosas, desesperadas e desamparadas. Problema é delas se qualquer probleminha as põe doentes. Não sabem administrar seus sentimentos, fogem da realidade quando a coisa aperta, ficam histéricos se nada corre da maneira que eles planejam, se frustram por qualquer empecilho mínino e podem inclusive matar sem pestanejar por qualquer futilidade ou uma briga banal de trânsito. Bando de mortos vivos comedores de pastel de feira que são! Merda! Tenho que conviver com essa escória e ainda ser polidos com eles. Que dúvida.

Liguei meu computar para começar meu trabalho. Nada mal. A pauta já estava pousada em minha mesa e só assunto moleza para escrever. Fazer a resenha de um cd dum babaca que trocou o rock and roll pelo “sertanojo universotário” (que diabos será isso? ) em troca de dinheiro não é uma forma tão desagradável de se começar o serviço. Dá para baixar o pau num cara desses com a maior satisfação do mundo.

Estava lá pelo meio do texto quando o palhação do meu chefe de redação me chamou com a grosseria de sempre. Caminhei devagar e displicentemente em direção a sua sala como eu sempre fazia. O elemento simplesmente era o típico escroto. Qualquer um conhece o gênero. Todo empolado e cheio de si porque a vida inteira deu ouvidos aos seus pais, aos seus padres, aos seus professores, aos seus policiais e aos fiscais da receita federal. Um paspalhão que achava que seu diploma dependurado na parede lhe dava respeitabilidade. Outro integrante da tribo dos perdidos e perturbados por seus próprios pensamentos incoerentes. Tenho que aturar cada coisa nesse plano astral absurdo cheio de “dor e expiação”! Será meu Karma tão duro assim? Não quero pensar nisso agora, então vamos aos fatos:

Entrei em sua sala com a expressão de sarcasmo de sempre. Não me olhou na cara e muito menos me convidou para sentar ou pediu um café preto ou uma água mineral com gás. Foi logo disparando todo sua frustração para o meu lado:

-Está com uma aparência péssima! Exclamou.

-Bebi demais ontem à noite.

-Sempre bebe demais, não? Quis saber.

-Nem sempre. Só quando tenho textos sacais para escrever. Retruquei.

-Não me venha com essas suas piadinhas que eu não tenho tempo precioso prá gastar com jornalistazinhos como você. Você via cobrir uma correição que será feita no Tribunal Penal de Ordem Demonológica Maçônica Estadual. E nada daqueles seus “textos gonzo” porque isso já está cansando. A mim e aos leitores. A secretária irá fornecer suas credenciais e a dona do jornal mandou você passar no caixa e pegar um vale para suas despesas. Não que eu particularmente ache que você deve receber por fora. Se eu fosse o dono dessa espelunca tipos como você estariam na rua da amargura e com uma carta de referência bem aviltante. Você é rebelde, inconstante, não se entende com autoridade, não tem moral e nem caráter. Não sei o que a Leda vê em você. Gosta da merda que você escreve, sei lá. Ordens são ordens. A matéria sai em dois dias então faça uma vez na vida uma coisa profissional e escreva apenas o que viu e ouviu. Ninguém aqui está interessados em suas opiniões pessoais. Apenas, uma vez, uma única vez na sua vida seja imparcial e narre apenas o ocorrido. Nada de floreio, esses seus textos desagradáveis e doentios somente fatos concretos. A correição começa as treze e trinta e não se atrase. Quando terminar de escrever entregue para a secretária. Não se atrase, Carlo. Vá para sua casa, seu quarto, seu bordel ou onde quer que você viva. Tome um banho. Faça a barba e dê um jeito nesse cabelão. Ponha uma calça que não esteja rasgada e vista uma camisa, por favor. Não sei como a Leda ainda tolera seu jeitão. Você é muito estranho. Vi vários tipos como você na escola e na faculdade e todos eles provavelmente deram em nada. “A Turma dos Esquisitões”. Porque tem gente que gosta de sofrer?

Como achei que a pergunta não era dirigida a mim resolvi não responder. Ah, se ele soubesse quanto era patética a sua necessidade de mostrar ao mundo que era um “cidadão de bem”. Saco. E tem mais:

- Anote tudo e depois escreva um texto curto e objetivo. Ninguém “mais tem estômago para aquela loucura de “minha cabeça estava derretendo do ácido da noite anterior” e’ a cerveja estava quente e a comida gelada’. Faça apenas o trivial, Carlo. Só o trivial. E pode se retirar que a o seu serviço já foi lhe dado.

Como eu já estava em pé apenas sai da sala e me dirigi até a secretária pegar as tais credenciais e a minha grana para as despesas. Encontrei com a Leda – dona do jornal – no caixa e ela me saudou alegremente como era de seu feitio. Se não fosse por essa santa mulher eu já estava no olho da rua há muito tempo ou trabalhando nas docas do porto de Paranaguá debaixo de sol e de chuva e com uma sífilis implantada no meio do meu cérebro.Ela tinha uns quarenta e oito ou cinqüenta anos mas aparentava menos com seu corte de cabelo curto e moderno, suas roupas elegantes e seu corpo maravilhoso e sua pele de pêssego. Tinha uma fala mansa e os olhos vivazes mostravam o que existia em sua alma. Perguntou-me como estavam as coisas e lhe disse com um sorriso de rosto que o chefe da redação era um idiota. Ela riu e fez um gesto com a mão que me dizia “deixa prá lá” e aí caí fora do jornal e voltei para casa me preparar para escrever um texto. Eram dez da manhã.

Fiquei pensando – já no meu apartamento e debaixo do chuveiro que catzu era “Tribunal Penal de Ordem Demonológica Maçônica Estadual”. O que será que fazem as pessoas que trabalham num lugar como esse? E quem iria trabalhar em um lugar como esse? Terminei meu banho e fiz a barba que afinal não estava tão crescida assim. Você, incauto leitor que por acaso esbarrou neste texto e o leu até aqui deve estar se perguntando por que tanta animosidade do chefe de redação por mim. A história e simples e posso muito bem contar aqui o que reflete no meu modo de escrever. Você pode vir comigo simplesmente e continuar a leitura. O que aconteceu na verdade é que uma vez esse imbecil me escalou para fazer uma matéria sobre uma convenção qualquer dessas aí e eu realmente naquele dia perdi a mão bebendo com os cachaceiros dos outros órgãos de imprensa daqui da capital e o que acabou saindo foi realmente um texto infernalmente lindo sobre a liberdade de imprensa. Tentei escrever de forma simples e acabou ficando gonzo mesmo. O desastre só se completou quando os leitores começaram a encher minha caixa postal com mensagens elogiando a matéria e dizendo “que eu tinha dado sangue novo a um jornal tão conservador” ou pessoas indo me procurar na redação falando que deveria escrever um livro e essas coisas. Claro que o chefe de redação frustrado e totalmente convencional ficou louco. Possesso de raiva. Literalmente espumando pela boca pelo simples fato de um cabeludo maconheiro como eu estar sendo o centro das atenções. Eu odiei isso de ser o “centro das atenções”. Sempre curti mais os bastidores que o palco. Esse é meu modo ser desde que tive idade suficiente para fazer minhas próprias escolhas e vou ser assim até o dia em bater as botas. Não me prendo em justificativas como o cidadão médio. Vou levando com dá. E assim começou todo o desprezo mortal do cara por mim. E sabe de uma coisa? Melhor assim.

Saí de casa vestindo minha calça preta de veludo cotelê, uma camisa branca de abotoar que deixei meio aberto no peito e que acabava revelando o patuá que eu levava no pescoço e tênis prestos. Um suéter preto amarrado na cintura, meu bloco de anotações e meu gravador de bolso na mochila e um livro do Gil Scott Heron se a coisa começasse a ficar muito chata e no fim das contas acabei fazendo de novo. Que dúvida, de novo. Tomei novamente o ônibus assassino para chegar ao tal de Tribunal Penal de Ordem Demonológica Maçônica Estadual. Que lugarzinho estranho. Juro que parecia um mausoléu. O segurança do lugar me olhou com cara feia e logo mudou para uma expressão amistosa assim que mostrei minhas credenciais. Eram meio dia e quarenta e nove. Eu tinha alguns minutos antes de começar a função. Precisava comer alguma coisa e pedi informação para o cara de onde eu poderia descolar um pão com bolinho de carne e uma cerveja e ele me indicou um bar de alemães a duas quadras dali. Agradeci e piquei a mula rumo ao boteco. Era legal lá dentro. Uma luz difusa, mesas e um grande balcão. Parecia um bar americano, mas tinham cartazes em alemão por ali. Sentei num tamborete junto ao balcão. Uma senhora de seus cinqüenta e tantos anos bonitona, robusta e de olhos azuis tomou meu pedido e eu fiquei analisando o cardápio. Eles preparavam bloody mary sim. Pedi dois para rebater. Enquanto esperava a comida e os drinques, adentrou ali um conhecido meu. Maluco manso. Velho hippie fingindo que esse mundo é uma jóia. Cumprimentou-me com um aperto de mão de negro. Aquele aperto meio frouxo, todo mundo sabe como é e perguntou se eu estava a fim de pegar umas bolas de haxixe. Claro, meu chapa. Comprei duas por cinqüenta pratas, o cara tomou um copo da minha cerveja e saiu dali. Fui ao banheiro para verificar a cara da parada. Parecia do melhor. Meu amigo tinha dito que o bagulho era afegão. Sempre o bagulho é afegão para esses caras. Nem pensei duas vezes e produzi um cachimbo com o papel laminado da minha caixinha de cigarros. Guardei no bolso da camisa e voltei ao balcão para comer e beber. Tudo estava ótimo. Pedi mais dois bloody, paguei e agradeci a atendente prometendo que eu voltaria outras vezes e ela sorriu. Achei uma rua tranqüila, coloquei uma bola no cachimbo improvisado e dei aquela tragada. Negócio gostoso. O barato raspava a garganta e ardia o pulmão. Outro tapa. Soltei. Mais um pega. Aquilo estava legal prá caralho. A polícia passou por mim numa viatura, mas não deu à mínima. Nem eu. Achei que estava chapado e suficiente e apaguei a parada. Guardei tudo em minha mochila e me mandei para tal convenção. Ora de trabalhar.

Vou comentar com vocês uma coisa que todo mundo já sabe. Quando você está em um ambiente estranho toda a sensação são muito vívidas. E eu estava num lugar prá lá de estranho. Era um auditório lotado com uns tipos que você não vê todos os dias. Gente com ternos que pareciam em tecnicolor. Verdes com vermelho. Azul com bordô. Amarelo com rosa. Cores assim. Talvez eu fosse o único por ali que estava trajado decentemente. Todos faziam cara de conteúdo, todos pareciam muitos seguros de si. Fui conduzido ao reservado da imprensa por um negro com um rosto afável e com um olhar agradável e descansado. Só os negros e os orientais estão por dentro do sentido da vida. E guardam muito bem esse segredo para eles mesmo. Sentei numa fileira de poltronas atrás de uma garota com cara de estagiária da Universidade Federal e com pernas que fariam o Bukowski escrever odes. Ela anotava freneticamente alguma coisa em seu bloco que eu copiava por cima dos meus ombros. Um falatório dos diabos no palco. Eu não entendia nada que era dito. Apenas jargão legal. Papo de advogado, se você preferir assim. De repente, BATEU! Todo aquele hash afegão pós almoço estava BATENDO! Com força total. Senti o tal auditório girar. Senti gotas de suor gelado descendo pelas minhas costas, testa e axilas. Senti que a qualquer momento eu poderia estourar numa gargalhada insana. Tentei me controlar. Vi um bebedouro e fui até ele. Quando levantei a emenda ficou pior que o soneto. A sensação auditiva era horrível. Como se as vozes humanas tivessem se tornado gritos de gralhas ou risos de hienas ou o tagarelar de araras. Puta que o pariu. A vontade de rir era quase insuportável, porém segurei minha onda. Sou um profissional ou não, porra? Enchi um copo plástico com água gelada e virei de um gole, enchi outra e a mesma coisa. Tentei voltar para o meu lugar e ignorar toda aquela chapação. Eu estava completamente CHAPADO no meio de toda aquela gente metida a importante que eu nem imaginava de onde poderiam ter saído. A coisa quase degringolou de vez quando um jovem vestido exatamente como os outros começou a discursar em um tom monocórdio que me pareceu vindo de um gramofone. Coisa de doido? Era exatamente isso que eu estava pensando. Tentei não pensei e entoei um mantra na minha mente. O suor gelado continuava a escorrer. Seriam os BM’s? Ou a cerveja? Ou as duas coisas? O cara finalmente parou o solilóquio. Dei graças aos deuses por isso. A pancada do haxixe parecia aumentar a cada minuto. Eu tinha uma matéria para escrever e estava numa sala cheio de malucos falando grego prá mim e ainda por cima com a moringa cheia de fumaça. Será que eu poderia segurar a onda e sair fumar um cigarro? Foi o que tentei fazer e pareceu que toda aquela gente estava me olhando e me fuzilando com seus olhares de ódio e rancor. Claro que eu sabia que era culpa dessa porra dessa droga, mas fiquei realmente assustado. Encontrei um canto onde outras pessoas estavam curtindo seus cigarrinhos e acendi o meu. Dei duas tragadas no meu filtro amarelo quando um cidadão chegou do meu lado e puxou papo. Simplesmente concordava com meneios de cabeça a cada frase que ele falava. Parecia que todas as pessoas estavam guinchando, balindo, mugindo, latindo, miando, cacarejando, coaxando, ciciando. Eu não entendia uma palavra que a figura me dizia. Apenas continua a sacudir a cabeça afirmativamente e tentava me concentrar no cigarro. Fumei um. Fumei dois e voltei para sala. Tinha uma “tiazinha” servindo café em copinhos plásticos e agarrei um. Dei um farto gole. Estranha forte e sem açúcar , exatamente do jeito que eu gostava. Sentei em meu lugar. Tinha perdido completamente a noção do tempo. Carlo – eu dizia para mim mesmo – segura tua onda cara, a qualquer momento você vai dar um fiasco aqui, vai sair algemado dessa bagaça. O gravador portátil jazia na minha mochila. Eu não conseguia ler. Não conseguia me concentrar. Que loucura. E ainda por cima veio o efeito do café puro. Logo eu que tinha lido Baudelaire. Sou um babaca mesmo. Hippie velho filho da puta que tinha me vendido aquela parada da melhor qualidade! Tentei concatenar as idéias e me concentrar naquela falação toda. Eu sentia um sorriso maluco e perpétuo se formar na minha boca. Tudo parecia absurdo para mim. O que aquelas pessoas estavam fazendo ali? Que para que diabo afinal servia um Tribunal Penal de Ordem Demonológica Maçônica Estadual? O que essa Audiência Pública representava na ordem do dia? Seria o ser humano realmente o que eu pensava que ele fosse? Um câncer, um cancro da natureza? Talvez eu estivesse absolutamente correto em afirmar isso. Porcaria de haxixe afegão de qualidade superior. Resolvi cair fora dali. Foda-se a matéria. Eu me viro e sempre me virei e não é um chefinho de redação qualquer que vai dar palpite nos meus textos. Sou Carlo Malta, porra! Escritor gonzo por excelência. Voltei para o jornal completamente chapado. Ainda estava do mesmo jeito. Não tinha baixado a bola. Quando entrei o chefe de redação levantou o cenho esquerdo para mim num olhar de pura reprovação. Minha aparência dessa vez realmente não estava das melhores. Fui ao banheiro, urinei, lavei as mãos e o rosto e fui direito para meu computador e comecei a martelar as teclas. Adorava escrever, isso era fato. Ninguém tem que meter o bedelho no que escrevo. Muito menos uma aspirante a cidadão de bem.

Consegui.

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 07/12/2010
Código do texto: T2658776
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