Ultrapassando a Si Mesmo.

Estava dormindo, sonhando com a mega-sena da virada. Cento e cinqüenta milhões fariam a cabeça de qualquer cidadão. No torpor do sonho ouvia cantos de pássaros ao fundo, bem baixinho; nisso, ouvi o bem-te-vi cantar seu canto peculiar, forte, persistente, canto não se sabe se de sofrer, de clamar ou de amar. O bem-te-vi cantava...

Chovera boa parte da madrugada. Ouvia chuva em interstícios de sonhos. Chuva, noite, trevas, seguidas de sol e cantos de pássaros era um bom sinal. Ergui-me da cama e imaginei um mundo perfeito, um mundo de luz, paz e sabedoria, à imagem e semelhança de Deus. Encontrei-o diante a janela do banheiro, nas nuvens.

Calcei o tênis, comi uma Macã, com a Sophia a me espreitar, ansiando um pedaço, o que dei prontamente, implantei um selvagem em meu ideal roqueiro e rumei, “run”, a correr em direção ao desconhecido.

Depois de muito transpirar, lá por King of Leon, vi alguém bem ao longe, correndo também. Apertei o passo, em instinto de competição e fui a seu encalço, tentando, talvez ultrapassá-lo, só pra competir mentalmente. Talvez não o conseguisse; talvez não quisesse; talvez ele me visse e apertasse o passo. Talvez isso, talvez aquilo..., e por aí vai... Decidi me aproximar, porém não ultrapassar. Como ele ainda não olhara para trás, obviamente não me vira. Não tinha retrovisores. Desta forma, resolvi estudar seu comportamento de um modo geral, correndo sozinho numa estrada ensolarada, sem fones, ao som da Santa Mãe Natura e de seus próprios passos secos no asfalto. No caso dela, não tinha certeza, pois, pelo pique, deveria ser um corredor contumaz, daqueles que usam tênis apropriados e cheios de molas em suas corridas diárias. Corredores assim não aparentam musculosos. São realmente mais para o lado dos magros.

Mais adiante, depois de mais alguns miligramas de “trans piração”, vi que duas moças vinham caminhando na direção contrária. Passariam pelo cara que corria à minha frente; ótima oportunidade para testar seus “modus comportamentais” diante as moças que se aproximavam. De plano, ao ver as garotas, ergueu o calção, talvez para mostrar as perninhas; endireitou a postura, manteve-se ereto e com o peito estufado. Foi engraçado. Confesso que até esbocei uma risada, mas me contive. Ah, e acelerou o passo, mas se mostrar másculo e atlético. Foi lírico ver a cena da atração humana. Incrivelmente, ao passar pelas moças e correr mais uns cinco metros, voltou ao normal de anteriormente; curvou os ombros, reduziu a marcha e relaxou o calção. Como pode? – pensei.

Fui seguindo-o até o fim da linha, mas não fui até lá, virei e voltei, enquanto o homem da frente ia até o fim. Agora eu era o homem da frente, mas não competi, só não queria ir até o fim e me deparar com o homem da frente. Estava num daqueles dias que não queria me deparar com ser humano algum. Na volta acelerei o passo para que não houvesse possibilidade do homem me ultrapassar e eu não ter que pensar na raça humana. Estava longe, pensando no “transcendentalismo anímico” de cada dia, quando ouvi passos fortes de um corredor tentando me ultrapassar. Era ele! Provavelmente foi até o final, voltou e viu que tinha alguém correndo à sua frente, o que não deixou barato: tinha que ultrapassar-me para mostrar que era um grande corredor! Reduzi minha velocidade para que não sofresse muito dentro de seus desejos vãos, e o vi passar pela janela de meus olhos. Era um homem de minha estatura, barbudo e que corria olhando para o chão, denotando preocupação. Corridas são bons meios de resolver problemas vários! Experiência própria.

Escolha um som propício para o momento; nas últimas duas horas que precedem a corrida, coma apenas frutas; não esquente muito a cabeça, deixe a alma...

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 30/12/2010
Código do texto: T2700023
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