Geraldim e o ancião

Ao passar pela primeira vez por aquela porteira me deparei com um garoto magricela, desdentado; por calção um pedaço de pano de tecido e cor indefinidos e com os pés descalços. Na mão um pedaço de vara.

Olhei atentamente para compreender o que fazia um moleque tão pequeno naquele lugar esmo e pude perceber que ele apascentava ovelhas e cabras, porém tinha se intitulado: abridor de porteira. Era nessa função que ganhava uns trocados. Sorriso aberto, olhos brilhantes e espertos; tentei descobrir sua idade, mas poderia ser qualquer uma; era uma mistura de criança com gente grande. Seu nome: Geraldim.’Nome de dotou, de gente rica, importante e sortuda’, viria descobrir mais tarde quando proseava com seu bisavô.

Há duzentos metros da porteira ficava um casebre de taipa, e ali vivia um velho e o menino. O velho quando ouviu bater palmas veio me receber à porta, respondeu minha saudação de modo que cheguei a conclusão: apesar da idade e da total ausência de conforto, estava satisfeito com a vida que levava.

-Bom dia, senhor.

-Dia, moça. O que se passa?

-Preciso de uma informação. Procuro a casa de seu Manoel da Taboca e me disseram que o senhor poderia me ensinar como chegar lá.

-Tou a seu dispor, moça. É fáci, e a senhora não se perde, não. Tá vendo aquela casa tombada?Siga por aquela estrada, passe pelo pé de imbu e vá descendo com cautela. É que a descida é grande e pode ser que o ‘carru escorrega’, e espichando o pescoço na direção do sol a senhora vai dá de cara com a casa do Mané.

-Sou-lhe grata pela ajuda. Como é seu nome?

-De nada, moça. Seu servo esqueceu o nome cumpletu de batismo, mas todo mundo nessas passagens me chama de Ancião. Só sei meu primeiro nome que minha santa mãe me deu: Sivirinu!

Apontei pro menino que ‘olhava ‘o rebanho.

-E aquele garoto é seu?Ele parece bem esperto.

Percebendo meu interesse, abriu a metade da porta, e me convidou pra entrar.

-Sente, sente. A casa é de pobre, mas recebe toda gente. Aquele minino, moça, é tudo pra mim. Minha mão, meu pé, meus óios, minha vida. Sei não! É a ‘vara de sustentu’ que nosso Sinhor me deu pra me fazê cumpanhia.É ele qui acumpanha o veio nas culsultas, pra tirá o ‘apusentu’, cuidá dos bichim e cuida da poteira pras cabeças do doutor Geraldu não guanhá istrada.

-Ah, sei! Essa fazenda pertence a famílha do seu Geraldo? Grande, não? Mas parece tão esquecida!

-É dona, issu aqui já foi um paraíso, mas dinheiru demais trás disgraça.Dipois que os véius morreram, os ‘rebentus’ tão se engafinhandu e enquantu issu, a fazenda tá se acabandu.

A conversa estava boa, mas a estrada era longa levantei pra seguir viagem, agradeci pela acolhida,e segui mais adiante.Por ali teria que passar muitas vezes, e o menino Geraldim e seu bisavô tornaram-se companheiros de prosa e saudações alegres quando eu por ali passava.

Certo dia ao chegar à porteira senti que algo não estava direito. O rebanho, a porteira, o velho sentado no batente da casa, mas o Geraldim não estava. Desci, abri a porteira, entrei na fazenda, fechei ‘aquela boca’ escancarada e segui até perto do velho que parecia ‘ausente’.

-Bom dia, seu Ancião, como está passando?

-Assim minha fia, assim. Respondeu-me sem levantar os olhos. O sorriso havia desaparecido e sulcos marcavam o rosto quase centenário. Apreensiva, continuei:

-Que aconteceu?O senhor está doente? Cadê Geraldim? Senti falta do seu menino!

-A sinhora num sabe? Falta senti o véio aqui. O coração tá partidu.Fizerum maldadi cum meu mininu.

-Não estou entendendo seu Ancião. Fizeram maldade com Geraldim? Quem fez malvadeza com o menino?

-Sei não, dona. Só sei do que viu meus óios.Isperei o minino pra armoçá, e eli num veio.Pensei qui ele estava no barreiru; ou um bichu tinha escapadu pra longi e ele havia de ter idu atrás...Mas, quandu a tarde chegou e os passus já deitaram as asas; o coração bateu forti e soubi que algu aconteceu cum meu mininu. Arrastei o corpu véio pra pedir socorro, veio o pessoá da fazenda, e acharum meu mininu, mortu por genti malvada. Fizerum safadeza cum meu muleque e despois matarum com pedra grandi na cabeça.

Procurei fôlego e não achei. Olhando aquele velho naquele estado percebi que não haviam matado apenas Geraldim, mas também àquele velho que diante de mim estava enroscado. Foi então que me lembrei de uma notícia que havia surgido no centro da cidade. Sobre um menino que apareceu morto lá pras bandas das Palmeiras, mas não prestando atenção ao caso, perdi a oportunidade de prestar minha última homenagem ao menino Geraldim. Não posso dizer que não vi. Vi, sim. Vi, num cortejo, um caixão pequenino sendo levado por peões. Pouca gente, num enterro de pobre, rumo ao cemitério.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 21/01/2011
Código do texto: T2742665
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