Uma história na noite

Sou garçom, trabalho em um restaurante popular, que funciona para jantar, fechando diariamente muito após a meia noite.

Logo após sua abertura, pouco antes das seis da tarde, o movimento é grande, culminando com a chegada de muitos clientes para jantar. Entre oito e onze horas, o movimento é intenso, exigindo muita energia não só minha, mas de todos os outros mais de dez garçons e demais funcionários à disposição da casa.

Mas após esse pico de movimento, sobra-nos tempo para respirar, para olhar para os lados. E nessas oportunidades, costumo ver no escuro da noite, a uma quadra, umas garotas de programa na rua, à espera de seus clientes. O local de prestação de seus serviços é no mesmo prédio onde elas ficam no passeio. Sempre que tenho tempo, observo à distancia, quase às espreitas, o movimentar de seus clientes. Ao todo deve ser umas quatro a cinco garotas, que se fossem em um emprego formal, com certeza ganhariam os prêmios por assiduidade e pontualidade. Umas discretas, outras extrovertidas, fazem aceno para os motoristas que passam a baixa velocidade.

Dentre elas, se destaca uma loirinha, magrinha, aparentando uns trinta anos de idade. Muitas vezes, após a abordagem de seus clientes, os vejo entrar prédio adentro. Cerca de meia hora depois, o cliente sai e ela vem em nosso restaurante jantar. Senta em um canto do salão, pede em prato feito de baixo valor e após fazer a refeição paga a conta e vai embora. Apenas ela vem jantar com certa regularidade. As demais jamais entraram no restaurante.

Um ponto curioso, é que ela só vem jantar se antes entrar com o cliente dentro de seu prédio. Fico imaginando que na noite que não tem cliente, não tem dinheiro para pagar a janta. Será isso? Será que se trata de absoluta sobrevivência? Por mais fértil que seja a minha imaginação, não consigo chegar a um consenso a respeito.

Costumo observar seu comportamento, quando vem jantar. Pouco fala, se limita a fazer seu pedido, se mantendo em seu mundo particular. Jamais veio acompanhada ao restaurante. Tem noite que ela está com semblante alegre, com jeito feliz. Mas em outros, age como se estivesse em um velório. Numa dessas, apresentava alguns sinais de agressão nos braços e nos ombros nus, deixado à mostra pela blusa de alça estreita. Pude perceber que não conseguiu se controlar e discretamente chorava, com cuidado para não ser notada.

Aquilo era uma rotina que passava despercebida pelos demais garçons, mas eu notava aquela silhueta de gente, parecia-me uma guerreira lutando pela própria sobrevivência. Parecia que ela não se entregava às circunstâncias, apenas vivenciava cada noite, por força da necessidade. Uma noite após outra.

Por mais de um ano eu a via com muita regularidade, quase todas as noites. Mesmo sem querer, me habituei a observar a rotina de sua jornada de trabalho. Quase sempre vestia o mesmo conjunto de saia e blusa banca de alças estreitas. Nas noites frias vestia um jeans surrado e uma jaqueta também nas mesmas condições.

Nessas observações, pude notar certa regularidade de um cliente em um carro branco. Dificilmente ficava uma semana sem que ele aparecesse ao menos duas vezes. E em todas as vezes que ele a visitava, quando se despediam, ela vinha jantar com ar alegre, podia-se ler quase a felicidade estampada em seu rosto.

Numa noite, já perto de fecharmos, eu notei que o cliente habitual não se despediu como de costume. Em vez disso, eles ficaram conversando por algum tempo ao lado do carro branco. Então ele a segurando pela mão, como namorados, a acompanhou até nosso restaurante. Sentaram e ele tomou a iniciativa de pedir o jantar. Foi a primeira vez que ela veio acompanhada. Pude ver que ela estava feliz, radiante, conversavam animadamente.

Após jantar, ele pagou a conta e os dois saíram em direção ao carro, que permanecera estacionado no mesmo lugar, em frente ao passeio onde ela ficava. Já ao lado do carro, em pé, ele a abraçou e pude ver que a beijou demoradamente na boca. Em seguida ele abriu a porta do passageiro e ela entrou no carro, com ar feliz. Ele tomou o lugar do motorista, deu partida e se afastaram noite adentro.

Foi a última noite que a vi naquele local. Também o carro branco não voltou mais.

Faria Costa
Enviado por Faria Costa em 25/01/2011
Reeditado em 28/01/2011
Código do texto: T2751018
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