Um Sofá Verde Virado Pra Porta

Eu pensei que fosse fácil fechar a porta depois que você se foi. Pensei. Troquei a tranca, mudei a chave, botei uma tetra. As chaves dispostas sobre a mesa e as travas abertas, a poeira é a única visitante.

Olho o corredor e monitoro o movimento do elevador, o vizinho se cansou da minha excentricidade e não me cumprimenta mais, se constrange ao me ver ali sentado, à espera eternamente.

Eu continuo a observar na certeza de reconhecer seu perfume ao entrar na portaria, odor mágico que virá pelas frestas do concreto me acertar o faro – nisso eu não pensei, qual será minha reação? Deixarei você perceber meu desconserto, meu desalinho, ou me prostrarei ao pé da porta qual uma mãe que surpreende o filho ao chegar bêbado de madrugada? Lhe farei censuras duras e aristocráticas ou me jogarei aos seus pés implorando que fique, que não me abandone à mingua, que não me relegue ao esquecimento cruel de uma relação rompida somente, por que fomos mais que isso, nossas noites e dias vividos tão intensamente hão de ter cimentado nossas almas, estamos ligados para sempre, isso você não pode mudar!

Não. Não vou deixar que você suma da minha historia assim sem consumir esse excesso de afeto que criei só para você.

- Alô!

Liguei. Sabia que não podia ligar, mas liguei. Os cabos telefônicos trazem sua voz impaciente ante minha mudez.

- Alô!

E eu falo o que? Volta? Minha vida está um bagaço, não consigo trabalhar, há dias não profiro uma palavra a seu ninguém, acho que perdi a habilidade de mover as cordas vocais...

- Gilson, é você?

Sou, sou eu.

- Gilson, cara, que merda... Você vai me fazer trocar o numero do telefone? Por que não pode ser numa boa, a gente viveu um troço legal e tal, mas acabou, sacou? Vai viver sua vida e me deixa viver a minha, beleza?

Viver? Viver o que? Que vida me restou? Um sofá verde virado para porta aberta.

- Olha, eu vou desligar e você vai prometer que não vai ligar mais, ta bom?

Esforço, esforço sobre-humano para não permitir que essa oportunidade se vá, se ela souber a extensão do meu sofrimento, se ela ouvir minha voz embargada...

- Espera, Lia.

- Aleluia, pelo menos falou alguma coisa. Agora que desentupiu vai dormir, por favor.

O que eu digo? Preciso usar a palavra perfeita que demonstre meu abismo completo, minhas unhas arrancadas dos dedos das tentativas de querer subir as paredes do poço.

- Lia...

- Você sabe que horas são? To com sono, Gilson, eu trabalho amanhã cedo e você também, vai dormir.

Não, Lia, eu não trabalho há três dias, por que não levantei mais desse sofá, mas isso é incipiente, é auto-piedoso e você não vai gostar. Vou ser durão, macho e mandar ela voltar agora senão vou me jogar pela janela.

- Lia, eu... Eu queria... Queria não, eu quero... Olha, eu... Eu...

- Putaqueopariu! Fala sério, meu! Ta tarde, to com sono, a essa hora...

- Lia, escuta!

- Ta, fala.

- Er... Você deixou o liquidificador com a vizinha do quarto andar e eu não falo com ela e eu preciso dele e você precisa resolver isso, essa situação foi você quem criou e eu não posso ficar resolvendo suas coisas e...

- Você ligou por causa do liquidificador?

Não! Eu liguei para dizer que sem você minha historia parou, os relógios estão quebrados, o tempo não obedece as leis da natureza, os dias nascem e morrem, mas tudo parece tão igual, nada se move e nos afundamos, eu e o sofá verde, no pó da solidão!

- Fala, Gilson! Você ligou por causa da porra do liquidificador quebrado que eu dei de presente para empregada da vizinha do quarto andar???

- Eu liguei por que você não se importa e eu preciso do liquidificador que não tava quebrado porra nenhuma e não foi dado porra nenhuma, foi emprestado inteiro e agora eu quero de volta...

- Eu não acredito nisso. Não creio, por todos os deuses do Olimpo, não creio que você queira me torturar por causa de uma merda quebrada que não está aí nessa cozinha há dois anos!

- Dois anos, Lia? Na festa do Cleber ele tava aqui em casa e inteiro, a gente fez batida nele a noite inteira...

- O Cleber trouxe o liquidificador dele, Gilson! Trouxe e levou de volta no dia seguinte!

- Não, não. Nada disso! Ele trouxe um pilão de fazer caipirinha, a Nívea é que foi lá na vizinha do quarto andar e recuperou o nosso liquidificador que você agora não quer ir buscar, por que você emprestou de novo, como se estivesse devolvendo algo que fosse daquela vaca do quarto andar...

- Ai meu deus, enlouqueceu o cidadão. Vou ter que internar. Não é possível. Gilson, a Nívea não é mais mulher do Cleber há mais de cinco anos!!! Esse episódio aí foi no outro apartamento!

- Não é mais mulher dele, mas veio no aniversário...

- Não, não veio. Naquela noite o Cleber veio com uma ninfeta a tiracolo e fuderam na nossa cama uma dúzia de vezes. E só saíram de lá por que eu ameacei jogar um balde d’água gelada.

Nossa cama... Ah, Lia! Nossa cama tão quentinha e receptiva, nossos corpos sedentos rolando sobre os lençóis, seu cheiro está lá tão arraigado, tão parte de você, tão seu que você terá que vir busca-lo, deve estar fazendo falta.

- Escuta, Lia, o Cleber era seu amigo e quem inventou o aniversário foi você. Você ofereceu o apartamento para festa.

- Meu amigo??? Ta maluco mesmo. Ele era da sua sala na faculdade e eu só concordei com a merda da festa por que a Nívea implorou, ela disse que todo aniversário o Cleber fica bêbado e vai azucrinar a paciência dela, tipo o que você ta fazendo agora comigo. Taí, Gilson. Achei a solução perfeita. Vai catar uma ninfeta qualquer na rua e vai trepar com ela até o pau ferir. Que tal?

Lia, Lia... Se tem um lugar onde eu quero ferir qualquer pedaço meu é dentro de você.

- É isso o que você quer? Que eu prostitua a cama que a gente foi feliz por tanto tempo?

- Ah, ah, ah! “Prostituir a cama”? Essa é a do século, não, do milênio! Preciso contar para alguém...

- Por que tanta ironia, posso saber?

- Deixa de ser cínico, criatura! Enquanto a gente foi casado, você questão de testar as molas do colchão com todas as vagabundas que encontrou pela rua, agora que a gente separou vai fazer do quarto um santuário? Ah, ah, ah! Tô sem ar. Até a Nívea, aquela piranha, passou pela alcova do Gilsão.

- Mentira. Nunca transei com a Nívea, ia ser traição com o Cleber.

- Filho da puta! Traição com o Cleber? E comigo, cafajeste? E eu nessa história? Chifruda, corna, a última a saber das suas putarias. Inocente útil, eu fui.

- Você não foi santa, não, minha filha! Eu soube do seu caso com o “doutor Jose Carlos” lá no seu trabalho de merda.

- Zé Carlos é viado, ó imbecil! E quem inventou essa palhaçada foi você para me fazer ficar me justificando diante de uma coisa que não tinha a menor possibilidade de acontecer. Aliás imbecil sou eu que estou aqui aturando suas merdas a essa hora da noite. O que você quer, calhorda? Quer que eu volte para aturar uma vida medíocre do lado do pusilânime mais incapaz da história da humanidade? Não vou voltar, Gilson, nem que você morra nessa merda de sofá verde com a porta aberta, de cueca e chinelo assombrando os vizinhos. Seu escroto, para com isso e vai trabalhar, senão vai ser despejado por não ter a grana do aluguel, certo? Por que eu não vou estar aí para cobrir suas dívidas.

- Lia, não foi por causa do liquidificador que eu liguei...

- Eu sei, cretino! Ligou para me infernizar e me convencer a voltar. Não vou voltar, ta ouvindo? Não vou voltar, não quero mais viver com um sem vergonha, safado que não lava a própria meia. Não quero mais dividir minha vida com um cara que não sabe nem com o que eu trabalho.

Não sei? Eu sei sim... Como é? É um troço lá de computador, como é? Programa, sistema, esses parangolés aí. Pensa, cabeça, é a sua oportunidade de ter de volta a mulher da sua vida, pensa, pensa... Ah! Lembrei!

- Analista de sistema.

Silêncio. Ah! Atingi o iceberg! Ela nunca imaginou que eu pudesse saber e eu sei. Sei e disse, agora ela vai voltar, mas o que... Ela... Que é isso?

- Ta chorando, Lia?

- Analista de sistema foi o meu curso na faculdade, Gilson, foi inclusive meu primeiro emprego de carteira assinada. Mas o meu trabalho, há três anos, é de gerente de marketing.

Jura? Será? Cacete! Errei mas não foi por muito, agora eu vou lembrar o nome da empresa, vou lembrar, preciso lembrar, é um troço que mexe com material de construção, acho...

- Para de se torturar, você não vai lembrar o nome da empresa.

Ela sabe mesmo tudo de mim, sabe ler meus pensamentos, sabe perfeitamente o buraco imenso que me encontro, a solidão que ta matando minha existência. E ainda me ama! Ela ama tanto que não desligou o telefone! E ta aqui falando comigo eu tenho uma chance, eu tenho, preciso usar a estratégia certa, preciso...

- Gilson, qual é o filme que mais gosto?

Almodóvar? Spielberg? Hitchcock?

- Qual é a marca do meu perfume?

Ai Lia, não joga tão sujo... Cadê? Tinha um frasco aqui na gaveta ainda, merda, vou achar, espera, Lia, eu vou dizer...

- Qual é o número do meu sapato?

É um pé pequeno, deve ser trinta e...

- Que jóia eu não tiro do pescoço?

Uma correntinha dourada, ou será de prata? Tem uma cruz estilizada, não, é um coração, um coração de cristal rosa... Não, cristal rosa era um brinco enorme, a corrente é dourada mesmo e é um coração...

- Qual é a minha idade?

Idade certa para você, meu amor... Ai essa pergunta vai derivar outra mais fatal e cruel que eu não vou saber responder...

- Qual é o dia do meu aniversário?

Isso, essa pergunta maldita, sou péssimo com datas, não lembro nem do meu aniversário... É no início do ano, tipo fevereiro ou abril, não sei direito, mas ela é de câncer, câncer é qual mês? Cadê o jornal? No jornal tem o horóscopo... Não chora, Lia, eu vou acertar o mês pelo menos, desde que você não pergunte o dia do nosso casamento...

- Gilson você não sabe nem o dia do nosso casamento.

- É, Lia, não sei, mas sei outras coisas... Sei que seus olhos são verdes e ficam acinzentados no sol forte, sei que suas costas são macias como pele de bebê, sei que seus cabelos negros são formados de cachos grandes e longos e ornamentam como uma moldura cara o seu rosto meigo, de bochechas salientes de criança que não acompanhou o crescimento do corpo forte de mulher adulta, de seios fartos que cabem perfeitamente em minhas mãos, de quadril largo e coxas receptivas, envolventes. Sei da sobrancelha que sobe quando está irritada, do lábio mordido quando tem medo, das narinas infladas nos momentos de riso largo e frouxo, sei da gargalhada meio interrompida, meio de soluços e sei da profundidade do seu beijo, da sua entrega completa no ato do amor, das lágrimas furtivas ao final do orgasmo.

- Dez anos...

- Dez anos que não foram só de erros, tivemos tantos acertos, fomos felizes...

- Não tivemos filhos...

- Pois façamos um... Um não, façamos três, cinco, dez filhos.

- No sofá verde...

- Isso Lia! Aqui no sofá verde, no tapetinho do banheiro, na pia da cozinha...

- E você fecha a porta da sala?

Jane de Paula Carvalho Santos
Enviado por Jane de Paula Carvalho Santos em 29/10/2006
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