Mês que Vem, Quem Sabe...

Cenário: ambulatório de hospital público. Alguns pedem cigarro, uma ou outra figura mais agitada desponta. Todos esperam a sua vez.

Cheguei, e procuro Joana, a moça de mechas pintadas que puxou assunto comigo no mês passado. Era março e ela falava das águas de março que fecham o verão. Mas hoje ela não está.

As consultas são mensais e de novo a outra, a morena bonita, está aqui. Eu olho, reparo que ela está olhando e depois disfarça, mirando a televisão. Será que meu olhar fixo, como da última vez, a assustou?

Tem jeito de moça simples, com traços de negritude e sandálias de dedo. Sento-me ao seu lado, logo ela se levanta e puxa um cigarro. Se afasta. Parece uma figura popular, das tantas que namorei. Vê-se parte de sua calcinha por cima da saia vermelha.

Acaba o cigarro e volta, sentando-se perto novamente. Abre a bolsa e - me surpreendo - puxa o folheto de algum centro cultural, conforme pude identificar com um olhar enviesado. Vejo o nome do cineasta Elia Kazan no prospecto. Xi, a moça é culta.

Beleza: um tipo popular, mas instruída. Está perfeita.

O tempo vai passando. Penso em fingir que meu isqueiro estragou e pedir-lhe fogo. Quiçá isso inicie uma conversa. Pego o isqueiro. Ele funciona e vejo que a farsa é impossível. Acendo o cigarro. A incomunicabilidade permanece.

Eis que chega a mãe da figura. Esportiva: calça colante cinza, tênis, tez igual à da filha. Começam a falar. Blablablá. Fico só ouvindo. Blablablá. Falam sobre cultura. De repente escuto:

- “Carandiru” é fraco...

Me intrometo:

- Poxa, eu vi e é forte à beça.

Retruca a mãe:

- Estou falando em termos de roteiro

cinematográfico.

Minha tentativa de entrar na conversa acabou por aí. Continuamos incomunicáveis. Blablablá, as duas prosseguem.

O médico, que atende tanto a morena bonita como eu, chega na secretaria envidraçada e chama as duas. Elas entram.

Espero uns vinte minutos e finalmente saem. Disfarço e fico olhando a televisão. Espreito a saída delas do prédio. O médico me chama, e o pano desce rápido sobre a cena.

Agora só mês que vem.

(2003)