Esperança (Chuva e Reencontro)

São José do Vale do Rio Preto, Rio de Janeiro. A família de Seu Raimundo aguardava a chuva passar. Mesmo com todas as portas e janelas fechadas, era possível ouvir a enxurrada lá fora, levando objetos menores do quintal da casa.

- Papai, estou com medo – Emily, sua filha de cinco anos, encolhida sobre o sofá da sala, tentava não chorar e pedia a proteção dos braços do pai.

Seu Raimundo e a esposa, no centro da sala, olhavam um para o outro, apreensivos.

- Eu sei, querida. Não fique com medo, logo a chuva vai passar e poderemos sair - Seu Raimundo tentava não exteriorizar seu medo, tentava parecer verdadeiro, mas era tarefa difícil – Abraçou sua filha com carinho.

Após quatro dias de chuva, as paredes da casa de Seu Raimundo já estavam úmidas; do telhado, insistentes goteiras obrigavam a família a se deslocar de um lugar para outro, arrastando os móveis consigo para que não molhassem. D. Izabel, esposa de Seu Raimundo, distribuía panelas, bacias e cumbucas por toda a casa, na tentativa de evitar que as goteiras molhassem o piso.

Lá fora, o vento forte fazia as telhas da casa estremecerem; as janelas e portas de ferro, também reclamavam irritantemente. De repente, um trovão reverberou nas paredes da casa, fazendo-as vibrar. Neste momento, Victor, de dez anos, começou a chorar: sempre teve medo dos trovões. Correu para junto da mãe, que procurou acalmá-lo em seus braços. A enxurrada no quintal, com o aumento da chuva, passou a levar mais do que objetos pequenos: levou também a casinha do cachorro e derrubou os postes, onde D. Izabel arrumava seus varais. Muita lama cobria todo o piso do quintal e da área em frente à casa de Seu Raimundo. O nível e a força da enxurrada subiam rapidamente. Logo invadiria a área de serviços, nos fundos da casa.

Seu Raimundo e sua família se mantinham calados a maior parte do tempo, tentando apanhar as goteiras do telhado e protegerem-se do medo; todos estavam assustados com o barulho que o temporal fazia. As últimas noites tinham sido bem longas, vigiando a chuva e o ribombar dos trovões, de modo que Seu Raimundo e D. Izabel estavam cansados, com profundas covas sob os olhos. Sentaram-se todos no sofá e encolheram-se. A temperatura caía com o anoitecer, enquanto o temporal aumentava. Os trovões, cada vez mais comuns, com clarões assustadores, pareciam querer derrubar as paredes, fazendo-as vibrar fortemente.

Quando as águas iniciaram sua invasão, primeiro pela porta dos fundos, depois pela porta da frente, chegando à sala onde a família se reunira, Seu Raimundo e D. Izabel sentiram o coração bater mais forte. A irrupção logo tomou todo o piso da sala, levando panelas, bacias e cumbucas.

Seu Raimundo levantou-se de súbito, gritando ordens:

- Izabel, me ajude a “catar” as coisas do chão e colocá-las sobre o sofá. Rápido! – Izabel já estava de pé, e também começou a falar:

- Victor, cuide de sua irmã. Não ponha os pés na água e não saia de cima do sofá, entendeu?

O garoto olhava para a mãe, assustado. Não foi capaz de responder, mas o medo em seu semblante já dizia tudo: não iria sair dali, de jeito nenhum.

Seu Raimundo e D. Izabel começaram a correr pela casa, erguendo móveis e objetos, salvando o que era possível da água lamacenta que tentava expulsá-los de sua casa. Correram para cozinha e conseguiram erguer a pequena geladeira, pousando-a sobre a mesa. O fogão também teve lugar sobre as cadeiras. Quando chegaram ao quarto, o guarda-roupa já estava com os pés submersos em quinze centímetros de água e lama. Retiraram as peças de roupa da parte mais baixa e espalharam sobre a cama de casal.

O barulho do temporal aumentava a níveis ensurdecedores. Também aumentava o desespero da família de Seu Raimundo. Tudo o que eles possuíam estava prestes a se perder na lama. Da sala, onde as crianças se encontravam ilhadas sobre o sofá, ouviu-se um estrondo, seguido dos gritos dos pequenos. O casal, então, correu e encontrou a porta da frente escancarada. Um mar de lama e lixo penetrava aos montes pela entrada principal da casa. Sofá, cadeiras, estante e tudo o que estava no chão foi empurrado de encontro às paredes. Lá fora, a enchente já levava carros, motos, pedaços de móveis e... pessoas.

Com as crianças nos braços, o casal correu para os fundos da casa, aonde a água ainda não chegara, e se abrigou dentro de um pequeno banheiro. Por lá ficaram, apavorados, ouvindo a enchente levar tudo; destruir tudo. Do alto do morro, um novo estrondo chegou à casa de Seu Raimundo e, da pequena janela do banheiro, ele viu a imensa tromba d’água descendo a ladeira. Aquele oceano carregava tudo que surgia em sua frente, sem piedade.

- Nós temos que sair daqui, agora! – Levantou-se e, agarrado aos filhos, correu para a porta dos fundos. A lama dificultava as passadas, mas conseguiu sair minutos antes de sua casa ser atingida pelo dilúvio. Correu contra a correnteza, Emilly pendurada no ombro esquerdo, Victor no direito, gritando “Vamos! Vamos!”. A água, já pela cintura, tentava arrastá-lo morro abaixo. Antes de conseguir chegar a um lugar mais seguro, ainda teve que enfrentar uma forte onda, que lhe cobriu até a altura do pescoço. Perdeu o equilíbrio, perdeu as forças, foi carregado alguns metros até ser jogado de encontro ao que sobrara da parede de uma casa. Exausto, com os braços fortemente amarrados aos filhos, Seu Raimundo percebeu que D. Izabel já não estava mais com eles.

- Izabeeel! – Gritou – Izabel, cadê você?! Meu Deus, não! Por favor, não! Izabeel! – Gritou novamente. Não houve resposta. Izabel havia sido levada pela correnteza. Emilly e Victor choraram junto ao pai.

Seu Raimundo e as crianças conseguiram alcançar um lugar mais alto e lá permaneceram. Cobertos pela lama, tremendo de frio sob a chuva que caía sem parar, aguardaram a chegada do socorro. Lá do alto, Seu Raimundo conseguia ver o que sobrara de sua casa: o telhado havia sido levado pelo vento e as paredes derrubadas pela tromba d’água que desceu do morro. Um grande rio de lama e lixo carregava tudo o que via pela frente. Também viu vários de seus vizinhos, em situação semelhante à dele, ilhados em lugares onde a correnteza não era tão forte, aguardando que alguém viesse salvá-los.

Já era início de noite quando tudo começou, e, naquele momento, com a noite alta no céu, a escuridão tornava tudo ainda mais desesperador. Durante a madrugada, a chuva começou a diminuir, até parar por completo. A correnteza foi perdendo volume e o nível da enxurrada foi abaixando. Já era possível ouvir o barulho dos helicópteros de resgate sobrevoando a área.

Seu Raimundo e seus filhos foram resgatados quinze horas depois do início daquele pesadelo. Sobrevoaram a cidade até um abrigo improvisado pelo governo, onde conseguiram banho, roupas limpas, comida e atendimento médico. As crianças estavam bem, apesar das longas horas sob a chuva e sem comer, mas a tristeza por ter perdido a mãe, de forma tão severa, era grande demais para que pudessem expressar sua gratidão a Deus. Seu Raimundo chorava copiosamente. Tudo pelo qual trabalhara a vida inteira para conseguir havia sido levado pela chuva. Sua esposa: jóia rara, mulher dedicada, boa mãe, havia sido levada pelas águas selvagens. D. Izabel. Izabel. “Minha Izabel”.

Sentados no catre improvisado, Seu Raimundo e as crianças olhavam o movimento do abrigo. A todo o momento, mais e mais pessoas eram trazidas pelos helicópteros. A maioria estava ferida, suja, desesperada. Médicos e enfermeiros correndo para lá e para cá, procurando aliviar as dores físicas. As dores na alma, naquele momento, só Deus poderia aliviar.

Os sobreviventes também andavam de um lado para o outro, acompanhando as macas e padiolas que entravam a todo o momento pela porta principal, tentando reencontrar um parente, um amigo, um conhecido que fosse. Choro, tristeza, expectativa, bocas escancaradas em “por quês” repetidos aos gritos.

Em meio a todo este oceano de desesperança e lamúria, Seu Raimundo – o bravo Seu Raimundo – aninhava seus filhos, em silêncio, sobre o catre improvisado. Em sua cabeça, também havia vários “por quês” se acotovelando, todos querendo, exigindo, uma resposta.

De onde estavam, era possível ver a porta de entrada do abrigo, de onde entravam as macas e padiolas com as vítimas. Sempre que o resgate entrava com algum ferido deitado na maca, Seu Raimundo era acometido pela vontade de se levantar para ver se não era sua Izabel. Logo desistia. Izabel não sabia nadar e não havia possibilidade de ter sobrevivido àquela correnteza.

- Senhor! – alguém gritou. – Senhor, aqui! - Seu Raimundo olhou para dentro de uma das salas e viu um dos médicos a chamá-lo.

- Sim, doutor – disse, sem levantar.

- Preciso da sua ajuda, pode entrar aqui um minuto?

Seu Raimundo levantou-se devagar.

- Victor, não saia daqui. Cuide para que Emilly também não saia. Estarei naquela sala ali – apontou na direção do médico.

Na sala, havia quatro macas, ocupadas, e um colchão estendido no chão. Sobre o colchão, uma das vítimas era atendida pelo médico.

- Preciso que o senhor segure esta bolsa de soro. Cuide para que a agulha não saia do braço da paciente. Irei à outra sala, pegar algumas luvas e agulhas novas e volto logo. O senhor pode fazer isto? – O médico mostrou como segurar a bolsa e saiu antes que Seu Raimundo pudesse falar.

A paciente estava muito ferida, com os braços cobertos por bandagens. A cabeça havia sido raspada, expondo um grande curativo. O rosto inchado e ferido. Só era possível ver que se tratava de uma mulher por que a paciente ainda conservava o esmalte nas unhas dos pés. Seu Raimundo não queria olhar. Sentou na cadeira, com a bolsa de soro erguida e procurou não pensar na mulher. Seus pensamentos voaram direto para sua antiga casa. Para os momentos em família, que trouxeram tanta alegria para sua vida. Voaram de encontro à imagem de Izabel. Lágrimas brotaram em seus olhos, fazendo-os brilhar.

Seu Raimundo se assustou quando o médico tocou-lhe o ombro.

- Obrigado, senhor. Pode me dar a bolsa de soro.

- Ah, sim, claro. – Devolveu a bolsa de soro para o médico, que a pendurou em um pedestal. Voltou-se para a porta e, ao tocar no batente, ouviu a mulher do colchão chamá-lo:

- Rai? É você? – a voz era hesitante e fraca, mas as palavras alcançaram os ouvidos de Seu Raimundo com clareza suficiente para serem entendidas.

Seu Raimundo parou de repente. Seu coração acelerou e ele se virou devagar. Só havia uma pessoa neste mundo que o chamava de Rai: D. Izabel. A sua Izabel.

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