Dinheiro Certo!

- Chegou a hora! Vou abrir uma pousada!

Dirceu alcançara aquela fase primorosa em que a maturidade profissional esbarra nos princípios básicos da auto-realização. Memorandos indecifráveis, faxes com borrões textuais, importuno toque telefônico, secretária feia e lenta, officeboy malandro, ascensorista cadavérico, manobrista patrão, chefe contestador, comentários, críticas, esporro. Felizmente, passado. Motivado pela idéia do irmão, insistida desde a juventude, sentia-se um vencedor. Finalmente, futuro.

Lembrou da esposa, presente nas escassas vitórias e inúmeras derrotas desde o início e companheira de sacrifícios. Dirceu a imaginava ao seu lado, os pés descalços, o chapéu de palha desproporcional à cabeça, suco de caju, rede, praia, vento, cerveja, sol, cochilo, mais cerveja, liberdade. Administraria os lucros da pousada sem pressões hierárquicas ou desgastes desnecessários. Resolveu telefonar para seu irmão a caminho de casa.

- Alô?

- Fala rapaz! Tudo bem?

- Quem é?

- Dirceu pô! Chegou o momento!

- Dirceu do quê?

- Dirceu, seu irmão! Vamos abrir a pousada e viver por nós mesmos. É a nossa vez!.

- Desculpa mas...

- Estaremos livres das amarras da subordinação para cuidar do nosso próprio negócio. Do jeito que combinamos quando éramos novos.

- Acho que o senhor ligou no número errado.

- Ué? Não é da casa do Celso e da Martinha?

- Não senhor.

- Desculpa rapaz. Estou tão empolgado que devo ter me enganado nos números. Até logo!

- Espera.

- Que foi?

- O senhor disse algo sobre abrir uma pousada?

- Isso mesmo! Chegou o momento de fazer o que dá prazer. Viver a vida sabe?

- Nossa...

- Que foi rapaz?

- Não é da minha conta, mas não tinha um jeito mais simples de aproveitar a vida?

- Como assim?

- O senhor precisa primeiramente fazer um estudo de viabilidade do projeto a ser implantado na cidade de interesse. Devem constar nesse estudo informações sobre o entorno da região, infra-estrutura básica, análise do mercado hoteleiro existente, facilidades de acesso, índices econômicos e sociais, perspectiva turística, especificações do terreno escolhido para a construção do empreendimento, considerando as exigências técnicas estipuladas pela Prefeitura, projeção dos resultados nos primeiros anos, sempre considerando as agitações sazonais, política tarifária, análise dos riscos...

- Riscos?

- Sim. Mesmo considerando todos os fatores, o mercado turístico possui oscilações inesperadas que inibem o crescimento da demanda, reduzindo consideravelmente a receita dos empreendimentos hoteleiros. Terrorismo, violência, desastres ambientais, desaceleração da economia, destinos alternativos. Desde o Bin Laden o mercado nunca mais foi o mesmo...

- Bin o quê???

- O senhor já pensou na estrutura do empreendimento?

- Humm...Na verdade...

- Quantas unidades habitacionais estão planejadas? Dimensão e disposição dos apartamentos no terreno? Haverá distinção de categorias entre os apartamentos? Qual o público alvo? Haverá piscina? Sala de ginástica? Quadra poliesportiva? Salão de jogos? Qual será a capacidade do estacionamento? Lavanderia própria ou terceirizada? O restaurante funcionará em sistema de buffet ou à la carte? Alguma cozinha específica? Italiana, francesa, “da fazenda”, contemporânea, brasileira? E o planejamento das operações?

- Que operações?

- É essencial que seja desenvolvido um programa operacional, descrevendo os departamentos existentes no empreendimento. Hospedagem, governança, vendas, manutenção, eventos. Depende da estrutura do lugar. Aliás, qual será o tipo de hospedagem mesmo? Pousada, hotel, flat, hotel fazenda, albergue, camping, estância, chalé?

- Humm... Acho que pousada.

- Haverá departamento de reservas na própria pousada? Poderão ser feitas pela Internet? E sobre a estrutura do site? Haverá um, não é? Será utilizado qual sistema hoteleiro nos computadores? O custo é viável? Quantos recepcionistas? E camareiros? Equipe da cozinha? O senhor está familiarizado com escalas de folgas?

- Bom, pensei que...

- As escalas de folga dos funcionários precisam estar de acordo com a legislação trabalhista, considerando, inclusive, os benefícios previstos em lei. Além disso, a incoerente movimentação dos hóspedes, fruto do fluxo turístico sazonal, exige flexibilidade operacional por parte da equipe nessa questão.

- Sei...

- Bom, desculpa ter me intrometido. Boa sorte no negócio do senhor...

- Tudo bem... Brigado...

Dirceu, com o olhar triste e as orelhas assadas, telefona para seu irmão, dobrando a atenção nos números discados.

- Alô!

- Celso? Sou eu, Dirceu.

- Fala mano! Tudo bom com você? Há quanto tempo!

- Lembra daquela estória da pousada que você sempre insistiu?

- Lembro sim! Um negócio e tanto, Dirceu! Dinheiro certo!

- Você já ouviu falar em estudo de viabilidade, Celso?

- Estudo de quê???

Dirceu desligou o telefone e desviou o caminho de casa, seguindo em direção à casa do irmão. A respiração acelerada e a velocidade das curvas confirmavam:

Naquela noite, seu sonho não seria enterrado sozinho.

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 30/10/2006
Reeditado em 30/10/2006
Código do texto: T277611
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