Francisco

No estacionamento ao lado da Assembléia Legislativa, sempre concorrido, os motoristas que, por muita necessidade se arriscam a garimpar uma vaga, conhecem logo na entrada o Francisco. Bonachão, calmo, chama todos por “Doutor”, uma delicadeza ímpar, chegando ao inacreditável. Embora humilde, quem conversa com ele descobre o quanto é inteligente. Mora sozinho na Costeira do Pirajubaé, numa casinha incrustada no meio das pedras do morro. Aparenta mais de sessenta anos e, para quem duvida e lhe pergunta, mostra a carteira de identidade comprovando seus 48.

-Só dezoito vividos, doutor, diz ele encerrando a conversa e saindo para atender outro motorista que chega.

Não pode ver um cachorro na rua ou um gato. Sua maneira de tratar os animais parece ser influência do nome. Dificilmente sua marmita não é dividida com vira-latas que, próximo ao meio dia, chegam e deitam perto dele. Em casa, tem quatro cachorros e três gatos, vivendo todos em perfeita harmonia, pelo menos até a hora da comida que ele dá quando chega do trabalho. Não pede esmolas, nunca pediu; aceita o que lhe oferecem. Lava, encera, cuida, fica batendo papo quando o motorista está aguardando algo. Muitos perguntam porque ele não procura um emprego fixo. Teria carteira assinada, assistência médica, FGTS, férias, etc... É a única pergunta que ele não responde. Fica cabisbaixo e se retira.

Chovia forte. Os relâmpagos clareavam as grossas nuvens que não tardavam em desabar. Carros paravam com problemas mecânicos, pessoas arregaçavam as calças até a altura do joelho para enfrentar a enxurrada, infestada de lixo e ratazanas, estas mais preocupadas em fugir da força da água do que morder alguém. Uma inundação na véspera de Natal, fazendo com que o jantar fosse adiado. O centro da cidade totalmente alagado, sem ir ou vir. Única alternativa: esperar.

E foi nesse momento de espera que vi uma pessoa na rua escura, com um cachorrinho no colo. Era ele. Trazia apertado contra o peito o pequeno filhote que gania de frio. Abaixo o vidro do carro e o chamo.

- Francisco! Sai desta chuva, amigo!...

De imediato não me reconheceu, mas qualquer abrigo naquele momento seria providencial.

Abri a porta do carro e ele entrou, junto com a água da rua.

-O senhor não teria alguma coisa para secar o cachorrinho?

Ele pergunta sem se preocupar consigo, embora escorresse de molhado.

-Tenho, sim!

Passei a toalha que estava no banco de trás e lhe perguntei:

- Este é um dos seus?

-Não, doutor, este aqui estava se afogando ali perto da Igreja.

-Encheu, perto da catedral?

-Não, ali na frente da Igreja de São Francisco, respondeu ele.

Por um momento pensei em São Francisco, protetor dos animais. Provavelmente intercedeu em favor do cachorrinho. E este não precisaria de proteção melhor, dois “Franciscos” a ajudá-lo.

Durante horas, aguardamos que a enxurrada parasse e permitisse o tráfego. Neste tempo, conheci um pouco mais do homem que aprendi a admirar pelo seu respeito, principalmente com os animais.

Francisco nascera no interior do Estado. Ele, como seus pais, trabalhava na roça para sustento da família de nove pessoas. Como filho mais velho, via-se o mais exigido no trabalho. Sentia orgulho de ser lavrador e comia literalmente com o suor de seu corpo. Sua casa, distante do centro da cidade de Capinzal, muito pouco oferecia de lazer, a não ser as festas de Igreja, Natal e Ano Novo, estas comemoradas em casa mesmo. Quando falou da comemoração de Natal em família, senti que revivia o que me narrava:

-Na véspera, como hoje, minha mãe escolhia duas galinhas gordas e preparava para assar. Não havia galinha mais gostosa do que as preparadas por minha mãe, disse ele, num meio sorriso de tristeza e alegria.

-Após a janta, meu pai entregava os presentes de todos nós. Para as meninas, bonecas de pano feitas por uma comadre de mamãe. Eu e os garotos ganhávamos bichinhos feitos com a ponta do canivete de meu pai. Ele mesmo fazia, com rodinhas, para que puxássemos como carrinhos. Eram cavalinhos, boizinhos, porquinhos, não havia bichinho repetido. Sabe, doutor, é num dia como este que sinto saudade de tudo, me disse, passando a mão na janela do carro para desembaciar.

-E a sua família, Francisco? Ainda mora no interior?

-Não, doutor. Depois que meus pais morreram, todos os meus irmãos debandaram para a cidade. Até minha irmã caçula hoje é uma mulher que se governa. O senhor sabe como é, uma família sem pai nem mãe não pode dar em alguma coisa que preste.

-E você, Francisco, porque não ficou com eles?

-Olha, doutor, a vida dá muitas voltas!

Disse isto e calou-se.

A água começava a baixar e o cachorrinho dormia tranqüilamente no colo dele. Eu, preocupado em estar com minha família; ele, em proteger o cachorrinho. Faltavam poucas horas para a meia noite, horário tradicional da janta de Natal. Pensei em oferecer-lhe carona para sua casa, mas me senti envergonhado. Ninguém jantaria com ele, e eu não sabia se teria uma ceia de Natal. Redimindo-me de tal pensamento, falei:

-Francisco, hoje você vai jantar comigo e minha família.

Falei como um pai. Ele me olhou e perguntou: posso levar o cachorrinho?

Foi demais para mim. O homem todo molhado, na véspera de Natal, preocupado com um cachorro de rua!

A mesa posta ostentava fartura. A criançada, reunida na sala, desembrulhava os novos brinquedos sem esperar a janta.

Francisco, sentado frente à televisão, aguardava. De vez em quando pedia licença e ia ver o cachorrinho que ficara na garagem, já alimentado e aquecido. A partir desta véspera de Natal, Francisco passou a ser o quarto membro da minha família e, durante cinco anos, não passou mais domingo, feriado, ou festa de final de ano sozinho. A única ressalva: saía um pouquinho mais cedo para levar comida para seus animais.

Tornou-se um grande amigo de todos. Ficava, inclusive, muitas vezes cuidando das crianças, para que pudéssemos sair.

Quando minha família aumentou, com a chegada de mais uma herdeira, convidei Francisco para batizar a recém-chegada. Ele estava com a pequenina no colo, levantou-se e a colocou no carrinho. Em seguida me convidou para irmos até o bar que ficava próximo. Não compreendi, mas o acompanhei.

-E daí, Francisco, o que é que você me diz?

-Por favor, amigo, me escute e não me interrompa enquanto eu não terminar. Falou-me olhando nos olhos.

-Tenho o maior orgulho de ser seu amigo e adoro a sua família, mas o convite que você me faz, merece o que tenho a lhe dizer.

Foi na mesa do bar, com dois copos de água mineral sem gás, que conheci a sua história. Tinha dezoito anos quando tudo aconteceu. Começaram a construir uma estrada perto do sítio onde morava, e foi solicitado ao seu pai que cedesse trinta metros do seu terreno. Ele aceitou sem cobrar nada. Eram trinta metros numa extensão de quase um quilômetro. As cercas foram recuadas certinhas e medidas pelo engenheiro da empreiteira. No dia que eles chegaram com as máquinas na extrema do sítio, o capataz disse que a cerca estava errada e que iria recuar mais 270 metros; ou seja, eles queriam 300 metros da terra. O pai de Francisco contestou, não aceitou que mexessem na cerca. Mandou que eles esperassem, até trazer o trato feito no cartório. Eles não esperaram. O capataz, na ausência dele, mandou o tratorista arrebentar toda a cerca. Logo depois, o pai chegou e viu o tratorista arrancando a cerca e os piquetes. Com um pulo, ficou na frente da máquina, para que ela não continuasse a destruição. O homem do trator, num ato de malvadeza, passou por cima dele. Francisco estava na roça de milho e viu a mãe correndo ao seu encontro, desesperada. No seu desespero, disse o que aconteceu. A polícia foi chamada, levaram o tratorista para a delegacia e eles ficaram tratando do funeral do pai. Na mesma noite, a mãe teve um fulminante ataque do coração.

Levaram o corpo da mãe para ser velado junto com o pai, na casa paroquial. O caixão do pai foi lacrado; o da mãe tinha um vidro que deixava vê-la. Difícil foi ele explicar para os irmãos pequenos o porquê do caixão do pai ser fechado.

Acendi um cigarro, respirei fundo, me controlando para não lhe perguntar nada. E ele continuou me contando.

-Naquele instante, amigo, não pensava em nada, me preocupava somente como iriam ficar os pequenos. Fazia dois meses do acontecido, quando peguei minha bicicleta e fui à cidade. Era época de Natal e, em cada loja, via o movimento das pessoas comprando presentes. Via os pais comprando brinquedos e lembrei do meu que nunca pôde comprar. Fazia a canivete o meu e de meus irmãos. Uma saudade grande me doeu o peito.

Neste momento, senti que se emocionou. Ofereci um pouco de água.

-Encontrei um compadre de meu pai. Ao me ver, perguntou como estava tudo lá em casa e mostrou-se sentido pelo acontecido. Contou que viu livre o assassino de meu pai, trabalhando na estrada que vai para Joaçaba. Na mesma hora, deixei a bicicleta encostada na mureta da estrada velha e caminhei em direção ao trator, que rosnava tentando retirar uma pedra. Apalpei a cintura e conferi se o facão de cortar mato sairia fácil da bainha. Neste instante, o capataz me avistou e veio ao meu encontro, com uma prancheta na mão. Ele me chamou e perguntou o que eu queria ali. Não respondi nada. Ele então me disse que no canteiro de obras não era permitido vagabundos e tentou me puxar pelo braço. Não sei onde pegou. Puxei o facão da cintura e rodei. O capataz ficou estirado no chão.

-Você o matou?... Perguntei, com cara de espanto.

-Fique calmo, amigo, eu ainda não acabei.

Tomou um gole da água e continuou.

-Sim senhor, e não me arrependi depois que eu soube que era o desgraçado que mandara o tratorista passar por cima de meu pai.

O homem desligou o trator e veio para cima de mim com uma marreta. Ele sabia quem eu era, porque disse:

-Já acabei com teu pai; agora eu acabo com a tua raça.

Ele tentou bater com a marreta na minha cabeça, mas errou. Deve ter sido minha querida mãe quem desviou. Quando a marreta bateu no chão, ele ficou arqueado. Levantei o facão, e a cabeça dele tombou com capacete e tudo. Fui preso e condenado a 30 anos. Sofri o que um cachorro sarnento sofre. De maus tratos a fome, aprendi a roubar e enganar. Nestes trinta anos, estive dentro da melhor escola de crimes e nunca cometi nenhum.

Neste instante, perguntei:

-Porque você está me contando tudo isso?

-Eu lhe devia há muito tempo esta explicação.

-Você não me deve absolutamente nada! Vamos pra casa, compadre!