Noite Inesquecível

Noite Inesquecível

Havia dois programas que ouvia: Flash de Amor e Noite pra Dois. O locutor caprichava mais no da noite, empostava sua voz, uma mistura de Julio Iglesias com Sérgio Chapelin. Ela adorava as poesias melosas recitadas por ele, com o fundo musical dos Bee Gees. Esticada na cama, pensando na vida... do outro, é claro! Como qualquer mulher romântica. Pensava no amor que ainda não viera e aguardava quatro horas, só pra ouvir ele caprichar na entonação e dizer:

-Esta música vai para a Saionara do Centro. Especialmente pra ela.

As lágrimas rolavam e ela nem conseguia escutar a música.

-Suspiro FM, boa noite.

-Gostaria de pedir uma música.

A telefonista não perguntava mais nem o nome de tanto ouvir aquela voz.

Roberval passa na recepção e pega os bilhetes dos ouvintes. Já sabia que o pedido de Saionara estaria entre os outros. Um amor platônico se inicia no êxtase de uma melodia.

Um dia, Saionara não ligou. Roberval não conseguia recitar sua poesia, não se inspirou naquele dia. Descobriu que sem Saionara a poesia era fria, não passava de meras palavras. Falta-lhe a inspiração. Saionara.

Sua ausência foi curta, felizmente para ele. Solicitou que a telefonista pedisse o telefone quando ela ligasse. Assim ela fez.

Durante o programa, esperava que a telefonista lhe trouxesse o número do telefone de Saionara. Na hora do comercial, que eram apenas dois, o da “Peixaria do Leca” e o da “Funerária Tic-Tac, sua hora está chegando”, pulou da cadeira e correu para a recepção. Na caixinha, um único pedido, o dela, a sua musa inspiradora e o telefone da residência. O segundo comercial já estava quase na metade. Ele calcula que dá tempo. Pega o telefone e liga pra ela. Tosse duas vezes.

-Alou!

Caprichou tanto no alô, que deu eco.

-Qué que é? No outro lado, uma pessoa com fala de poucos amigos.

-É da residência da Saionara?

-É, o qué que tu queres?

-Gostaria de falar com ela.

Silêncio. Só escuta o barulho do telefone caindo e depois uma voz meiga:

-Alô!

-É Saionara?

-Sim

-Aqui é o Roberval, da rádio Suspiro FM.

-Novo barulho do telefone caindo e gritos. Ela desmaiou. O sonoplasta já colocava uma música, mas Roberval, mesmo com cara de assustado, continua o programa. Desta vez, todas as músicas foram dedicadas a ela. Ficou tão entusiasmado com aquele simples sim, que dedicou também para ela a hora certa.

Dizem que o amor verdadeiro vem em horas incertas. Se para Saionara estava exato, para Roberval foi um atraso. Ele tinha uma amante trinta anos mais velha, feia de dar dó. Falava “enrrado” e “catredal”, isso quando não tava chorando pela morte de “Tranquedo”. Porém, quando abria o talão de cheques, era uma musa que descera do Olimpo com quatro querubins sustentando. Roberval se apaixonara exatamente por isso. Dos dois patrocinadores do programa dele, só cobrava da peixaria e recebia em peixe ainda. Tinha uma vida de nababo, carro do ano, casa na praia. Vestia roupas de etiqueta e viajava nas férias para Campos do Jordão e Gramado. Durante o meio da paixonite aguda, ele teve diarréia, calafrios, ânsia de vômito, tonturas, pé de atleta, calo no supercílio, febre, constipação e mais um monte de coisa ruim. Toda vez que estava com a amante, ela desconfiava.

-Querido, você está tão mudado!

-É que estou com dor barriga!

Estavam se esgotando as desculpas, para ele não tocar nela. Não poderia dizer que estava apaixonado por uma pessoa, da qual só havia ouvido a voz e uma única palavra: Sim.

Dizem que os astros trabalham em prol dos apaixonados. Chegara uma hora antes na rádio para fazer a seleção de músicas. Começava a subir as escadas e sentiu um perfume delicioso.

-Chegou na recepção e uma loira mulher está lendo uma revista. Ela, ao vê-lo, corre e lhe dá um abraço. Ele, surpreso, cumprimenta.

-Oi, Saionara.

Não houve dúvidas. Uma perfeita simbiose de sentimentos. O ápice do amor.

Fez o melhor programa da vida. Na hora da poesia, os telefones não pararam. Até ouvinte homem chorava comovido. Frente ao aquário, lugar onde ficam os locutores, Saionara, a cada palavra, sorria e suspirava.

Convidou-a para passarem um final de semana juntos na praia. Era o que ela sonhava; aliás, pensava todo dia em estar ao lado do dono daquela voz.

Pra ser honesto, como sua amante, que só era bonita ao abrir o talão de cheques, Roberval só era bonito para Saionara quando falava. A natureza lhe foi ingrata. Deu-lhe uma voz de canário em um corpo de saracura com caxumba; tanto que, nas poucas vezes que saia com a amante, as pessoas comentavam:

-Estes se merecem.

Era o contrário do que Saionara dizia para as amigas.

-Nossa! Ele é parecido com o Brad Pitt.

Roberval era o verdadeiro “tasse”. Malhava duas vezes ao dia e andava com comprimidos azuis no carro, que o deixavam ligado.

Chegou o dia. Cinco da manhã já estava pronto. Iria apanhá-la às sete da noite no sábado. Estacionou frente ao prédio de Saionara, com o cuidado de colar bem a placa traseira. O carro não era dele e se algum conhecido passasse, poderia contar para sua amante, que com certeza iria rodar a baiana. Sete e dez e ela não desceu. Sete e trinta e três, ela chega na escada. Tem consigo um garoto loirinho e rechonchudo.

-Que diabos!

Ela chega sorridente.

-Olha, Biozinho, este é o Roberval, o moço da rádio.

Biozinho era o diminutivo de Obílio, que Roberval imediatamente soube ser o filho da Saionara.

-Vamos, disse ela.

-Aonde?

-Para a praia, respondeu ela não entendendo a pergunta.

-Ah, sim.

Colocou o banco do motorista pra frente para o garotinho entrar.

-Não. Ele vai no meu colo, na frente. Atrás ele enjoa.

Neste instante, chegou o porteiro com cinco malas, uma sacola, um velocípede de plástico, uma bola e duas raquetes de frescobol.

Roberval acaba de ajeitar as malas no carro às oito e quinze. O bagageiro, banco traseiro, o chão dos bancos e os pés dela estavam cheios. No banco do carona, Saionara e o garoto.

A viagem era de aproximadamente uma hora. Quando o trânsito aliviou, Roberval perguntou:

-Porque você não me disse do garoto?

-Você não me perguntou.

-Por acaso você é casada?

-Não, sou solteira!

-Entendi.

-Dá pra você dar uma paradinha no próximo posto que o Biozinho quer fazer xixi?

-Claro!

Ele olha o relógio. São quinze pras nove. Aproveita a parada no posto, para comprar um chocolate. Seguiram viagem conversando sobre um monte de coisas. Biozinho prestava atenção nos carros que passavam.

-Esse é um Mercedes 313, esse é um Fiat 147, esse é um MP Lafer com motor de Fusca.

-Que legal!

Era só sorrisos. Saionara vibrava pois , além de tudo, Roberval gostara do Olíbiozinho.

-Roberval, você pode dar uma paradinha?

-Aqui?

-É. Tem que ser agora. O Olíbiozinho vai vomitar se...

Não deu tempo. As calças de Roberval e o espelho, incluindo painel, pára-brisa, volante e até o velocímetro, não escaparam das golfadas antagônicas expelidas pelo esôfago de Olíbiozinho. Roberval pára o carro. Ela pede:

-Roberval, pega a toalha azul com amarelo que está na mala verde embaixo da branca.

Procura, procura e não acha. Estava na mala vermelha, embaixo do banco do carona. Nove e quarenta, e após o trágico episódio, reiniciam a viagem, que tinha pela frente uns quarenta quilômetros ainda.

-Estou com uma fome, comenta Roberval.

-E eu duas, responde Biozinho.

-Agora você não pode comer; mas podemos tomar um sorvete, falou a mãezinha.

-Pararam numa casa que servia espeto corrido. Corrido dos fregueses, porque na porta dizia: “Hoje Mocotó à Baiana”.

Roberval adorava mocotó, Saionara não podia dizer o mesmo. Tomou um sorvete e aguardou pacientemente que Roberval terminasse o quinto prato. Ele revisou o óleo, a água e partiu. Já antegozava os momentos que passaria com Saionara.

-Esse moleque não dorme? Pensou.

Eram dez e quarenta, quando ele rapidamente abriu a porta da garagem, para guardar o carro na casa de praia. Põe a chave na porta principal e gira. A chave quebra.

-Onde é que eu vou arrumar um chaveiro a essa hora da noite?

-Eu não sei nem onde a gente está.

Duas horas da manhã, Biozinho dorme aos braços de Saionara. Roberval finalmente consegue abrir a casa, após ter encontrado, num bar, o chaveiro da cidade. Saionara ao entrar, pediu licença, colocou a criança no sofá, preocupando-se em tirar bem a camada espessa de pó que se acumulara. Roberval foi direto ao banheiro.

Sentou-se ao lado de Obílio e o aguardou para tirar as malas do carro. Foi quando viu uma barata no canto da sala. Imediatamente seu sapato bico fino fez o serviço. Pleft! Foi o último som que a barata soltou. Ouviu mais plefts e plofts e perguntou:

-Aí também, tem barata?

-Hein? Respondeu ele com um “hein” meio gemido.

Os ploft, plift, plaft, pleft, escatapleft renderam por mais um bom tempo. Um fedor insuportável invadiu a cozinha.

-Roberval, vou abrir a janela.

Ploft, pleft, bum, bum! Quando saiu do banheiro, Roberval estava pálido e suando.

-Que foi, Roberval?

-Estou com um pequeno mal-estar. Vamos até uma farmácia.

-É melhor eu ficar, porque o Biozinho está dormindo.

Saionara ouvia o barulho do mar, Nada lhe incomodava, estava feliz ao lado de seu amado. Agora, imaginava ele voltando e lhe cobrindo de beijos. Porém, mãe é mãe. Viu um mosquitinho sondando a alva cútis de Olíbiozinho. Ela, como uma loba, pulou de supetão no inocente sugador de sangue e evitou que a derme tão macia e o sono de rei de seu bebê fossem prejudicados. Não conseguiu nem chegar no banheiro. Quando abriu a porta, uma nuvem amarela de mau cheiro fez com que tampasse o nariz e trancasse rapidamente a porta. Limpou as mãos nas próprias calças. Mal acabara de limpar, e já havia mais dois impertinentes vampirinhos alados preparando-se para aterrisar. Novamente os Pleft, ploft. Agora aéreos. Não deu mais conta e quem pagou o pato foi a toalha da mesa, que rodopiava feito hélice sobre o garoto, que babava de sono.

Tempos depois, volta Roberval.

-Oi, querido, estás melhor? Disse Saionara.

-Peraí só um pouquinho que eu já volto. Foi direto pro banheiro, após ter alvejado todo o banco do carro que sofrera uma parte das conseqüências. Após muitos plocts, plums, prrrrrrssss, uuuuhhhhhrrrrgggs, sai mais pálido que da primeira vez.

-Acho que o mocotó não entrou bem!

-Eu tenho certeza, diz Saionara, horrorizada com o odor característico que invadia a sala.

Mas tudo estava longe de ser um problema. O encontro tão sonhado não poderia ser estragado por apenas cinco pratos de mocotó à baiana de beira de estrada, nem algumas nuvens e enxames de pernilongos. Saionara abana a nuvem de insetos que se formara a sua frente. Consegue finalmente visualizar seu amado e, ao estilo novela das oito, o abraça na altura da cintura. Roberval, do alto de seus 1,95, avistava lá embaixo sua parceira de 1,60. O amor finalmente venceu. Ele pôde ultrapassar as barreiras da feiúra e da altura, mas atravessar o tsunami amarelo que saia do banheiro foi difícil até para ele.

As carícias sonhadas a cores e nos últimos detalhes se fizeram verdade e levaram Saionara às nuvens. Na cama, lençóis vermelhos especialmente comprados na liquidação por Roberval, ilustravam o cenário do conto de fadas. Saionara veste uma camisola preta, de seda, longa e justa, que retratava um corpo de mulher menina. Roberval, que estava tomando uma cerveja, leva um copo para ela.

-Agora não. Eu quero é te abraçar e ficar juntinho.

Inconscientes, num comum acordo, deitaram-se. Delicadamente, ele vai puxar o lençol, quando soa o barulho nada estranho. Prrrrrrrrrr!

-Deve ser um cachorro aí na rua.

Preocupação desnecessária, ela nem ouviu. Estava em êxtase. Novo barulho. Prrrrrrrr. Este segundo também não ouviu, mas sentiu o cheiro e viu o amado sair correndo para o banheiro. Ela aproveita, levanta-se, dá uma olhadinha no Biozinho, que dormia com os anjos. Os mosquitos deram uma trégua. Ajeita-se na cama, deixando propositadamente uma parte da camisola aberta estrategicamente, e o aguarda. Roberval aparece. Cheirava a perfume do 1,99. Não fala nada, ajoelha-se ao lado dela.

-Demorei muito?

-Não, não há demora, para nós dois o tempo não conta. Como você diz no programa, “a noite é uma criança”.

Ele sorriu, começou a retirar a camiseta que vestia. Nas costas, escrito em letras garrafais, ela leu: “Programa Roberval Silva, o Prazer da sua noite.”

Riu sozinha. Os astros conjuminavam a seu favor. Roberval dirige-se ao seu lado da cama e ao sentar, aquele som que já conhecemos, desta vez, seguido de alguma coisa. Passa a mão. Confirma. Um líquido esverdeado escorre em suas pernas. Levanta-se num pulo e vai para o banheiro.

O sol de verão bate na janela sem cortinas. Saionara aguarda Roberval sair do banheiro novamente.

Vem cheiroso, cabelo escorrendo água.

-Vamos à praia?

Foi aí que ela lembrou-se de Olíbiozinho. Corre para o quarto ao lado. As bochechas, braços e pernas do garoto não tinham mais lugar para caroços. Ainda afasta alguns com as mãos. Neste instante, Roberval chega na porta do quarto e diz:

-Querida, nós já vamos à praia. Espera só um pouquinho, que eu tenho que ir ao banheiro.

No chuveiro, após passar duas horas no bacio, ele ouviu um carro parar frente à casa e em seguida a voz de sua amada lhe chamando.

-Roberval!

-Oi, querida!

-Vá a merda!...