Águas passadas

Águas passadas.

O sobrado havia sido tombado pelo patrimônio histórico e nunca fora reformado, os pedaços da parede, sem o reboco, deixavam amostra como a cicatriz do tempo o pau a pique.

Dos moradores, restavam poucos, o mais velho Sr. Antenor. No tempo que ainda trabalhava, fabricava louças de barro e vendia no antigo cais que havia no mercado público.

Benzedor de primeira. Para nó na tripa, impinge, verruga, arca caída, erisipela, bastava uma benzida, a que exigia três benzidas era cobreiro bravo. Entre barro e benzidas, Sr. Antenor criou seus sete filhos, todos homens. Hoje, com seus oitenta e quatro, seu único passatempo é olhar pela sacada do sobrado e enrolado em uma manta, independente de inverno ou verão.

O único dos sete a morar com ele é Juvenal que não para em casa. Tem dias que as dores nas pernas não permite que se levante para tomar um aparadinho e vai comer algo, altas horas, quando Juvenal chega em casa.

Sr. Antenor gosta mesmo é de uma boa prosa e relembrar seus tempos idos. Como muitos não dispõem de tempo, passa muito tempo só a olhar pela sacada e analisar sob sua simples ótica o que vê. Viu um casal aos beijos embaixo da marquise de uma banca de revista. Todos os Domingos, no final da tarde, lá estavam eles. Viu anos depois eles passando com uma criança no colo.

-Como o tempo passa, faz dez meses, ontem mesmo estavam namorando, hoje estão com um filhinho. É, a vida passa muito rápido.

Falava sozinho, discutia sozinho e tirava suas conclusões. Marcava o tempo, cada segundo dele e o vivia da forma que podia. Acompanhava todo o movimento político na Praça, ouvia as promessas de campanha e as conversas acaloradas do bar da esquina.

-Ainda bem, estou desobrigado de votar, juntando todos não valem um ovo!

Xingava, ria, sentia.

Durante anos a Procissão dos Passos percorre sua rua e a imagem fica apenas a alguns metros dele. Todas as vezes chora de emoção. Na medida que a procissão vai passando, se distrai e ri dos anjinhos de asa caída e das velas maiores do que quem as carrega. Uma vez, viu e ouvia uma mulher xingando a “Verônica”.

Ficou especialista em detalhes, reconhecia ao longe as pessoas que passavam na calçada em frente a sua casa.

-Hoje esse brigou com a mulher!

-Será que essa mulher não tem outro vestido?

-Que cara de ladrão tem este vereador, será que ninguém vê?

-Hoje não vendeu nada pela cara.

Era um homem carregando uma pasta que todos os dias passava por ali.

-Está com cara de quem arrumou um amante. Agora anda toda emperiquitada e cheia de ouro. Comentou quando a mulher que não trocava o vestido passou no mês seguinte.

-Cara de ruim, mas é de sangue muito bom!

-Esse aí deve a todo mundo!

-Veio da Igreja.

-Vai para o culto.

-A professora hoje não dormiu bem.

-Lá vem o chato!

Cada um que passava ele acompanhava até sumir na esquina. Conhecia até a maneira de andar de cada um.

-Esse nunca passou por aqui, deve ser do interior.

-Está atrasado, é a quarta vez nesta semana.

E quando viu o homem retornar, comentou:

-Foi mandado embora.

Ninguém o cumprimentava, ninguém o via. A pressa não deixava. Aquela sacada e aquele velhinho faziam parte inerte da rua.

Foi testemunha surda e muda de batidas de carro e atropelamentos e viu gente morrer!

Sentiu a loucura de uma sociedade carente de sonhos, sabia seus anseios. Lágrimas secaram sozinhas em seu rosto a remoer até o sono as injustiças sofridas, desilusões e amarguras de todos que ali transitavam.

Um plantão velado e repartido sem explicação lógica, sem alardes, mas que o fazia ainda, se sentir vivo.

Com certeza na morte, ele teria companhia.