Dois dedos

Dois dedos

Sabe exatamente quando começou, lembra que ainda usava calças curtas. Após as aulas, no período da tarde, entregava aguardente com um carrinho de mão para Sr.Argemiro, dono do único engenho de cana da localidade. Durante três dias na semana, percorria os dois quilômetros entre o alambique e a mercearia do Sr.Bernardo. Ganhava pouco pelo “carreto”, porém representava muito na ajuda que dava em casa. Seu pai havia falecido e a mãe, lavando roupas para fora, cuidava de mais quatro irmãos.

-A benção mãe! Vou entregar cachaça.

-Deus te abençoe, aproveita e trás um quilo de farinha de milho. Dizia a mãe, vendo o filho se afastar empurrando o carrinho.

Chegava ao alambique e os garrafões de cinco litros já estavam prontos para o transporte. Colocava quatro deles no carrinho e revestia com folha de bananeira para não quebrar. Sr. Argemiro pagava adiantado porque sabia que o serviço seria bem feito e também porque o dinheiro que lhe dava, servia para comprar mantimentos no armazém.

A estrada esburacada fazia sacudir os garrafões. Fechados com rolhas, permitiam que um ou outro vazasse forçando o condutor a passar a mão aberta para lamber a cachaça que escorria.

Até seus treze anos foi o único entregador oficial do Sr. Argemiro e desde os oito anos, um lambedor de aguardente.

Muitas vezes chegava mais alegre e falador no destino, principalmente após uma chuva, quando a estrada estava mais esburacada.

Aos treze anos arrumou um trabalho de ajudante de engraxate na cidade. Saia de madrugada, ainda escuro, e retornava noite alta com a féria do dia na mão que entregava à mãe. Aos dezesseis se tornou oficial engraxate e pela primeira vez tomou um porre.

Passava frente a um bar e sentiu o cheirinho da cachaça do Sr. Argemiro. Chegou ao balcão e pediu dois dedinhos, mostrando o mindinho e o polegar esticados com os demais dedos fechados. Antes de tomar, deu uma lambida no copo como para matar a saudade.

Os dois dedinhos se repetiram quatro vezes até uma saideira sem medida. Engraxava de dez a vinte pares de sapatos por dia, fora os que dava tinta.

Nos dias que pintava, era o dia que mais bebia.

-É para tirar o veneno que é tóxico! Dizia ele lá pela quinta vez dos “dois dedinhos”.

Nunca deixou de amparar a mãe e os irmãos, tampouco faltou um dia ao serviço.

Casou bem, moça de família, encaminhou os irmãos e trouxe a mãe para morar com eles. Os dois dedinhos nunca lhe trouxeram qualquer problema, mas por imposição da esposa, reduziu os dois dedinhos para uma vez na semana e escolhendo o sábado.

Vieram os filhos e agora já era dono de uma sapataria. Bem que podia se dar ao luxo de uma bebida mais cara, mas não, permaneceu fiel a velha cachaça e cumpria o prometido a esposa.

A idade chegou, ele não deixava do seu compromisso aos sábados. Num sábado estava ele sentado com amigos e a velha amiga junto. Um amigo que deixara de beber, começou a contar-lhe o malefício da cachaça. O que lhe deixou impressionado. Chegando em casa disse a esposa:

-Hoje foi o meu derradeiro dia que tomo pinga.

A esposa acreditou, sabia que seu marido tinha palavra e acariciando a sua cabeça disse:

-Fico feliz com sua decisão! E lhe deu um abraço.

Eram cinco horas da tarde do outro dia, a sapataria não abriu.

Os filhos reunidos, a esposa sentada ao lado do corpo.

Num canto, um ancião tem os olhos vermelhos e marejados de lágrimas e dizia ao filho mais velho:

-Seu pai foi o melhor entregador de cachaça que eu tive! Que Deus o tenha!