Nome Comum

NOME COMUM

O gosto salgado na boca lembrava o desjejum da véspera. Carne seca com farinha, sem ser peneirada, grossa para dar consistência. A cada passo mais saliva brotava.

Não viu o sol nascer no horizonte, tampouco ouviu qualquer passarinho.

O frio mantinha uma névoa compacta e a temperatura negativa desencorajava qualquer pio.O desengonçado pingo deixava escorrer uma baba cor de musgo na boca de poucos dentes, cerrados pela areia misturada na relva com geadas intermitentes, mesmo que no celeiro fardos secassem pendurados no teto.

E o velho cavalo tubiano não conseguia engolir; tampouco sabia cuspir , a baba dando-lhe um aspecto de cão raivoso .

Rufino seguia o cavalo. Este era o guia a que confiava sua vida . A lenta marcha morro acima com dois grandes cuidados: não pisar em cobra e não desabar na ribanceira . Na semana anterior, um velho peão fora picado e passou desta para uma melhor; roxa foi sua cor durante sete dias e na passagem tinha nuances de vermelho.

Rufino pensava em tudo e não atinava nada. Pensou em Deoclécia e em seus doces, pensou nos seus cinqüenta e tantos esquecidos anos; ou seriam sessenta e poucos?

O único cartório existia em Laguna, e quando nascera foi época de chuvas. Um velho tio tentou registra-lo na primeira semana, na segunda. Desistiu, criou coragem dois, quatro ou cinco anos depois, e quando o fez, esquecera a data de nascimento do sobrinho que estava criando. O tabelião não quis registrá-lo no “EU ACHO QUE FOI”.

Não tinha documento, sim senhor. Tinha algo mais valioso. Carregava dobrada em quatro, protegida junto com um brebe, a certidão de batismo que Frei Donato, que vindo de Lages, lhe dera em mãos.

Os dois caminhavam, passo a passo, todo cuidado seria pouco e um descuido levaria ambos à morte .Os passos tinham o ritmo da batida do coração dos dois; isto mesmo , eram tão ligados que os corações batiam uníssonos.

Que diabos, que este capão não chega!...

Silêncio, cuidado, dois cegos em trilha estranha, seis pernas, mesmo destino sem rumo, apalpando-se para poder continuar e criar coragem. A névoa espessa se compacta cada vez mais. Rufino pensou em mudar de posição e deixar o Pingo na frente; porém, não havia espaço para trocar de lugar.

Logo vamos entrar na trilha do capão, disse Rufino ao cavalo, e parecendo entender, o amigo bufa forte. Não marcara o tempo mas, pelo que caminhara, já deveria começar a clarear a trilha .O bufar do cavalo lhe traz mais recordações e estava pensando exatamente nele. O velho amigo estava mesmo velho. Via o suor escorrer como lágrimas pela sua venta, e o seu caminhar parecia descompassado.

Alguns raios de sol surgiam paralelos à linha do horizonte. Firmava a vista no caminho, que ora piorava. Ouviu um bater de asas, uma curicaca pousa atrás dele, outro barulho e outra curicaca. Na trilha afunilada um estranho cortejo se forma .Um cavalo, um velho e duas curicacas em fila indiana.

Rufino continuava com suas lembranças, não entendia nada, o chão úmido coberto por mata nebular abafava qualquer ruído. O silencio começava a doer. A batida do coração do velho mateiro agora tinha o ritmo do arfar do cavalo. O bucho roncou e marcou o tempo. Já tinham passado mais de quatro horas que partira. Com seus botões calculava que já havia percorrido quase cinco léguas. Faltariam, então, mais de quinze. E o ronco do bucho marcou também a hora do aparadinho. Ajeita-se num pequeno espaço e pára o cavalo.

Amarrado na ponta da chincha, chacoalhando mais que sineta em pescoço de mula guia, o pão caseiro, queijo e salame e num cantil café frio, misturado com farinha.

Senta-se nos calcanhares, saboreando aquela refeição, observando as curicacas que paradas a poucos passos olhavam fixas em direção à trilha. Não se moveram nem quando Rufino jogou-lhes migalhas de pão. Ele não entendeu o porquê Sorriu, perguntando-se sozinho: “Como vou contar isto na roda de chimarrão?...”

Mastigava e olhava para o cume do panelão. Era uma elevação com formato de tampa de panela de pressão; era a sua referência, a sua direção. No alto do panelão estava mais aberto. Fechou o saco, agora mais leve. O pão de Deoclécia nunca sobrava para o almoço e o salame continuava na mão depois da primeira cortada. Era como um fumo de corda, comendo a cada passo.

Seguiu caminho. Não se preocuparia com o tempo, coisa que tinha de sobra .Mas as curucacas já o estavam deixado curioso.Olhava para trás e lá estavam elas, pulando as toiças do caminho e olhando fixas pra a frente da trilha. Num encruzo, uma neblina forte fecha o tempo. Rufino segura o rabo do cavalo; confiava no bicho. Valeu cada dia de trabalho. Fazendo das tripas coração, construiu muitas taipas pro italiano. Fora quase um mês de trabalho sol a sol, inclusive domingos. Carregava, quebrava, juntava e matutava a melhor maneira de fazer o serviço.

Não via a hora de montá-lo.

Foi um dia de chuva forte, relembra sorrindo. Ri sozinho, como naquele dia, pois o italiano lhe paga mais que o combinado, lhe dá o cavalo com encilha. Gostara do serviço.

Novas lembranças, muitas de muitos e muitos anos. Do namoro e do noivado com Deoclécia, foram mais de quinze anos. Destino danado, conheceu a amada vestida de noiva a caminho da igreja, prometida ao filho de um rico comerciante de gado, exportador de carne seca da serra para o litoral. Não sabe até hoje porque seguiu as carroças ornamentadas com flores. Aquela morena de cabelos negros lhe enfeitiçara.

Na entrada da igreja os amigos aguardavam. Os noivos, na época, chegavam juntos. Para saúda-los, sacavam seus para-belos e atiravam para o alto. Rufino lembra muito bem do barulho dos tiros e da gritaria após. O noivo estava estirado no chão e Deoclécia chorava nos braços do pai. Algum infeliz puxara o gatilho antes de levantar a arma.

Deoclécia fica mais de dois anos desconsolada, não tinha mais animo para nada, ao contrário de Rufino, que neste mesmo tempo só pensava num jeito de aproximar-se dela.

Não possuía atributos que visualmente chamassem a atenção, mas em curto tempo, se houvesse oportunidade, sua prosa era contagiante e cativadora. Era mês de julho. Fora contratado para levar um bagual para as bandas do Rio do Rastro. Topou a empreitada apesar do frio, e no fundo alimentava a esperança de encontrar Deoclécia. Teria que passar próximo à casa dela.

- Pingo, vamos viajar!...

Um riacho serpenteava o caminho. Apeia do cavalo e amarra o bagual.

Cata grimpa para acender o fogo, já antecedendo o prazer de tomar um café cabeludo.

Embaixo de uma araucária encontra uma ovelha, tão fraca que não consegue balir.

Só poderá ser de alguém que mora próximo.

Bendita ovelha desgarrada.

Sentado junto ao fogão, pitando fumo das visitas, aguarda Rufino que Deoclécia sirva a janta.

Seu Juvenal ficara tão grato, que o convidara para o pouso em sua casa, fato este que se repetiu por mais de uma dezena de anos, e que se não fosse pela conversa que seu Juvenal teve com Rufino, até hoje estariam namorando.

“O senhor sabe do apreço e consideração que eu e Deoclécia lhe temos, mas o senhor não acha que está na hora de arrumar esta situação por vez?”

“Da mesma forma, seu Juvenal, esta delonga também não me satisfaz. O caso é que Deoclécia ainda não esqueceu o acontecido com o outro e eu estou aguardando que ela decida me querer.”

Neste curto diálogo, Seu Juvenal pôde mensurar o amor de Rufino por sua filha, pois nestes anos todos, honrara e respeitara sua dor. Seu sentimento era de um pai com orgulho de seu filho.

“Fique sossegado e vá até a vila falar com o vigário para marcar a data do casório, e deixe que eu falo com Deoclécia”.

Como um raio, Rufino encilha um animal e parte.

Uma semana se passa. Quando retorna, encontra Deoclécia lhe esperando na porteira e, para sua surpresa, o abraça e beija na boca.

E o pingo testemunhou tudo, do primeiro beijo ao primeiro choro dos onze filhos. Fora com ele que Rufino buscara em Águas Claras a negra Luzia, filha de escravos, que pesava mais de oito arrobas. Mas o amigo guinchou o tranco, trazendo os dois a tempo.

Foi com ele que enterrou Rufininho, vítima de sarampo brabo.Amarrou o caixote com o corpo do pequenino e o amigo o carregou por mais de quatro léguas. E só foi tomar água quando a derradeira pá de cal foi jogada na cova. Eram amigos até debaixo d'água.

Rufino, em suas andanças pelo pé da serra, foi surpreendido por uma enxurrada.Não havia para onde correr. A tromba d'água descia como uma bocarra engolindo tudo. O gosto de barro já tava na boca, quando sentiu uma pancada que lhe jogou para cima. Era Pingo, que com as fuças o levantou, permitindo que ele se agarrasse em suas crinas. Bicho bom!

Foi também por causa dele que o casamento com Deoclécia quase acabou.

- Ou eu ou o cavalo!...

Foi uma punhalada no peito de Rufino. Não deu resposta.

Pegou um cobertor e saiu porta afora.

E se Deoclécia não voltasse atrás, ele jamais voltaria.

Sua vida teve dois períodos, um com o Pingo e outro sem o Pingo.

Morreria por ele, morreria com ele.

Sabia que já estava perto do capão, mesmo estranhando a demora. Do capão em diante a trilha seria bem melhor, o nevoeiro por lá não ficava por muito tempo.

Olha para trás e não vê mais as curicacas. Dá de ombros. O difícil será contar o caso pros amigos.

E nada de chegar no capão. Será que o velho cavalo se perdera?

Será que não era para lá, quando entrou para cá?

O nevoeiro danado que foi o culpado. Não admitia que o cavalo errara.

Encosta Pingo no barranco e toma a dianteira. Sente a aragem fria no rosto, até então rebatida pela traseira do animal. Procura sua referencia e nada vê. A névoa fechou de verdade. Segue adiante passo a passo. Se era lento, agora é quase parando. Nada via.

Cerra os punhos e aperta a corda que puxa o pingo; atitude desnecessária, o velho companheiro jamais ficaria pra trás. Durante uma tacada de boiada a chincha arrebentara, derrubando Rufino no meio da manada de boi de campo. Não havia como fugir dos chifres e cascos dos animais bravios, agravada a situação por uma perna quebrada na queda. Como conduzido por rédeas curtas, Pingo estaqueia-se nas patas traseiras e deita-se ao lado de Rufino, fazendo uma barreira com seu próprio corpo. A boiada parecia que não pararia por nada. Rufino apertava no peito a imagem de Nossa Senhora Aparecida, junto com a sua certidão de batismo. Não havia tempo de rezar. Antecedia o horror de ter seu corpo esmagado pelos cascos ou perfurado pelos chifres dos animais. Pingo não se movia ao seu lado. Por milagre de Nossa Senhora ou reconhecimento de São Francisco pela bravura do cavalo, no último momento as primeiras guampas desviaram para o lado e todos os animais passaram sem tocá-los. Rufino abraça Pingo e não se sabe com certeza se foi naquele momento que ele fez o pacto de morrer por ele.

Á sua esquerda, ribanceira com fundo de sumir de vista; à direita um paredão de rocha.

E este capão que não chega!

De lá ele poderia traçar o seu rumo.

A bufada do Pingo lhe confirma que não esta só. A poucos passos à frente, o casal de curicacas está parado de costas para ele, e nem quando Rufino tenta passar elas não se movem.

As curicacas pareciam não ver Rufino, estáticas olhavam para frente.

Rufino pára e não sabe o que fazer. Jamais acontecera algo parecido com ele. A bufada do Pingo lhe chama a atenção. Olha para o animal e este também está olhando fixo para frente. Nem as moscas que lhe rodeiam a cabeça o fazem piscar.

Olho no olho, olhos fixos para frente.

Muito estranho! Que diabos está acontecendo?

Podia se ouvir quatro corações batendo uníssonos.

A névoa começa a se dissipar. Já podia se ver um pouco mais, talvez uns cinco metros agora ficando mais fácil.

Rufino senta-se sobre uma pedra. As curicacas permanecem imóveis, o amigo pareceu voltar a si e uma relinchada confirmou. Rufino esperaria um pouco mais para que as curicacas saíssem do caminho.Tempo não era o seu problema.

As curicacas começam a se agitar e como loucas correm em linha reta, batendo as asas e gritando.

Rufino se assusta, mas não tem tempo de saber o que foi aquilo.

Pingo salta-lhe em cima, a pata dianteira bate em sua cabeça.

Não sabia se sonhava. Viu Deoclécia, Rufininho e o velho tio que não conseguiu registrá-lo. Sentia gosto de sangue na boca e cheiro de suor de cavalo.Ouviu relinchos, rosnados e curicacas gritando.

Adormeceu.

Á noite, nas montanhas, as estrelas parecem estar mais perto.

Abriu os olhos e viu o cruzeiro do sul. Sentiu algo pegajoso em seu rosto e tirou com a ponta do pala.

Tentou se mexer e não conseguiu. Pingo estava sobre ele. Seu grito ecoava entre os paredões: Eia Pingo, eia Pingo, eia Pingo. Eia, eia, eia.

Perde a voz, perde-se na escuridão da incerteza, apalpando a cara do amigo, do amigo irmão.O tempo pára, o silêncio reina.

Amanhece e dois tropeiros o encontram. Com muito trabalho conseguem retirar o que resta do cavalo de cima de Rufino. Cabeça, tronco e pernas, as entranhas foram arrancadas.

O que mais comoveu foi o olhar do animal, sereno, fitando o longe.

Rufino desmaiado, coberto de sangue respirava com dificuldade, mas vivo.

Penas de curicaca espalhadas por todo o lado e rastros de um leão da montanha com um filhote.

Entre uma cuia e outra, um velho diz palavras sem sentido.

Como poderia contar?

Todo o dia, toda a hora, Deoclécia, resignada, o vê chamar com os olhos fixos no horizonte: Pingo, eia, eia, eia.

O velho mateiro amargurado de olhos tristes, que durante toda a sua vida jamais desistira de lutar, entrega-se à espera da morte, por não ter conseguido cumprir para si próprio sua promessa. Morrer pelo cavalo ou morrer com ele!