Parto de Emergência

Zé Leite e Naldinho estavam a caminho do sítio onde Dedé morava, a quase três quilômetros fora da cidade. Iam visitá-lo, e aproveitar para se deliciar nas mangueiras do sítio, que estavam carregadas das mais doces mangas da região. Zé Leite era órfão, e vivia com suas tias. Pequeno e de pouca idade, não podia ir até lá sozinho, por isso ficou muito feliz quando Naldinho, que era bem maior que ele e mais velho, aceitou o convite para acompanhá-lo, e suas tias finalmente concordaram com o passeio.

Estavam no meio do caminho, quando viram Dedé que vinha correndo esbaforido.

- Que foi Dedé? Por que a pressa?

- Preciso chamar o médico… Minha mãe está mal, talvez o bebê esteja nascendo… – relatou.

- Deixe que eu vou. – ofereceu-se Zé Leite. – Corro mais rápido que você e estou descansado. Volte com Naldinho para sua casa e veja o que pode fazer. Eu vou atrás do Doutor Manoel.

Zé Leite logo se pôs a caminho. Dedé e Naldinho seguiram ao sítio. Minutos depois ele entrava correndo no Posto de Saúde. Sem parar para recobrar o fôlego foi logo perguntando:

- Cadê o Doutor Manoel? A mãe de Dedé está mal e acha que o bebê vai nascer.

- Acaba de sair para casa. Nem deve ter chegado lá ainda. Mas…

Zé Leite não esperou a atendente concluir a informação, e já corria para a casa do Doutor Manoel. Encontrou-o à porta de casa.

- Doutor, a mãe de Dedé está mal e acha que o bebê vai nascer agora. Precisa de sua ajuda.

- Vixe Nossa! Ainda não é o dia certo… – entrou em casa e começou a arrumar precipitadamente sua maleta.

- Rosinha! – gritou para sua assistente, que estava na sala, enquanto procurava uns medicamentos – Vá depressa procurar a parteira, Dona Quitéria. Pegue um carro de praça e a leve até a casa de Dona Mariana, a mãe de Dedé… e vá depressa! Eu vou com o jipe para lá, mas vou precisar de ajuda. Ainda não é o tempo certo dela dar à luz…

Rosinha saiu apressada, enquanto Doutor Manoel e Zé Leite entravam no jipe, que estava no beco ao lado da casa do médico.

Dirigindo o mais rápido que a estrada esburacada permitia, logo chegaram à casa de Dona Mariana. Naldinho e Dedé tinham chegado há alguns minutos. Maria Odete, irmã mais nova de Dedé, dava atendimento à mãe, que parecia delirante. O médico a examinou, e logo percebeu que o bebê estava nascendo, e que a mãe estava prestes a desmaiar. Preparou uma injeção e aplicou na mulher.

- É um estimulante. A senhora não pode desmaiar agora, o bebê está vindo. Odete, ache para mim panos, pode ser fraldas, cueros, toalhas… – pediu, enquanto preparava a enferma para o trabalho de parto. – Naldinho e Dedé, ponham bastante água para ferver, e preparem uma bacia. Zé Leite, fique aqui nos pés da cama para me ajudar.

Todos foram rapidamente cumprir suas tarefas. Odete chegou com umas toalhas e as fraldas que estavam destinadas ao bebê. O Doutor posicionou uma toalha embaixo das pernas da mulher. Pediu um pouco de água quente aos meninos, lavou as mãos e ensopou uma das fraldas, Retirou a roupa de baixo de Dona Mariana e a limpou. Zé Leite corou, pois nunca tinha visto uma mulher naquela situação (bem, corar aqui é figura de linguagem, pois Zé Leite era tão pretinho que corado ou não ninguém iria perceber. Tempos depois ele narrou que sentiu a maior vergonha, o rosto queimou…). Pelo toque, o médico percebeu que o bebê já estava vindo, porém as contrações estavam muito fracas.

- Dedé, deixe Naldinho encarregado da água e venha até aqui. Você também, Odete. Fiquem um de cada lado de sua mãe segurando os braços, e a ajudem a fazer força. Zé Leite, pegue uma fralda e fique preparado para amparar o bebê quando estiver saindo. Eu vou empurrar a barriga.

Todos se posicionaram rapidamente. O médico comandou:

- Força! – e ao mesmo tempo empurrava a barriga da mãe para baixo. Umas três ou quatro vezes repetiu o comando.

- Doutor! – chamou Zé Leite apavorado. – A cabeça já saiu, mas tem uma coisa enrolada no pescoço.

- Ai, meu Deus! – Deixou o que estava fazendo e foi ver o que estava acontecendo. Enquanto seus dedos ágeis desembaraçavam o cordão umbilical do bebê, chamou Naldinho:

- Naldinho, venha empurrar a barriga como eu estava fazendo! Rápido!

Naldinho veio e logo estava preparado. Tinha observado o médico e sabia o que fazer.

- Zé Leite, fique preparado com um pano encima de seus braços. Vou entregar o bebê para você assim que nascer.

Enquanto auxiliava o bebê a sair, comandava os demais para fazerem força em conjunto. Mais uns três ou quatro comandos e o bebê finalmente nasceu. Ainda preso ao cordão umbilical, foi parar nos braços de Zé Leite. O médico, com a fralda molhada limpou rapidamente o muco que estava em sua face. Imediatamente o bebê começou a chorar.

As crianças se emocionaram, os meninos tentavam disfarçadamente conter as lágrimas que desciam. Zé Leite, com o bebê nos braços não podia limpar as lágrimas, por isso deixou-as correr livremente enquanto abria um imenso sorriso.

- Odete, molhe um pano com água fria e passe no rosto de sua mãe. Isso a ajudará a se manter consciente. Dedé e Naldinho, preparem a água. Vamos precisar dar banho no bebê. Segure, Zé Leite, vou cortar o cordão.

Enquanto preparava para o corte do cordão umbilical, o médio ia explicando o procedimento:

- Quatro dedos a partir da barriga… amarramos aqui… mais quatro dedos… amarramos de novo… mais quatro dedos… de novo… mais quatro dedos… de novo. Agora cortamos entre o segundo e terceiro nó. Pronto. Depois temos que aplicar medicamentos, mas agora o bebê precisa se alimentar, para parar de chorar. Zé Leite, leve o bebê para Odete…

- Melhor ela vir pegá-lo… minhas pernas estão tremendo demais… estou todo tremendo…

Odete veio e com jeitinho, pegou a criança.

- Coloque-a para mamar no peito de sua mãe. – o médico ajudou a expor o seio de Dona Mariana, que estava cheio, e o limpou com uma fralda molhada. – Pronto, sossegue essa criança…

Enquanto a criança mamava, o médico atendia a mãe. Mediu-lhe a pressão, aplicou-lhe mais uma injeção, ajeitou seu corpo na cama. Ela estava fraca, mas consciente. Dedé veio ver a mãe, fez-lhe um carinho e disse:

- Veja, mãe… deu tudo certo. Agora tenho mais uma irmãzinha. Como ela vai se chamar?

- Maria… – disse a mãe num sussurro. E depois, olhando as crianças a seu redor, complementou: – Maria dos Anjos… vai se chamar Maria dos Anjos...

Nisso, chegaram a parteira e Rosinha.

- Desculpe a demora, Doutor. – foi logo dizendo a parteira. – Uma menina cortou o pé num caco de vidro e tive que lhe dar atendimento. Foi um corte feio, aproveitamos o carro de praça para mandá-la ao Hospital em Pesqueira. Depois não achamos outro, tivemos de pedir ajuda a Seu Zé de Zaca, que nos trouxe até aqui.

- Não tem problema, Dona Quitéria. Deu tudo certo. Só falta agora os procedimentos de depois do parto, limpeza e tudo mais.

- Deixe comigo, Doutor. E o que faz esse monte de crianças aqui?

- Tiveram de me ajudar…

Dona Quitéria percebeu aflição no Doutor. Suas mãos não paravam de tremer, e ele estava pálido.

- Difícil?…

- Foi… fora de época… a mãe estava prestes a desmaiar. Tive de dar-lhe uma dose grande de estimulantes. Não conseguia fazer força direito… precisou empurrar… Depois, o cordão estava enrolado no pescoço… enfim, tudo errado…

Dona Quitéria logo entendeu os motivos da aflição do médico. Em sua experiência, partos complicados assim sempre acabavam em morte, às vezes da mãe, às vezes da criança, às vezes das duas, mas sempre havia morte.

- As crianças me ajudaram… – completou o médico.

- Graças a Deus, Doutor. Deus manda a ajuda necessária às pessoas que merecem. Graças a Deus. Agora, vá espairecer por aí, já fez muito… eu e Rosinha cuidamos do resto. – e voltando-se para os meninos: – Todos para fora! Já fizeram muito, agora vão caçar o que fazer lá fora. Precisamos cuidar de Dona Mariana.

Os meninos saíram da casa. Quando o médico saiu, Zé Leite percebeu que ele parecia muito agoniado. Para tentar animá-lo, fez um desafio:

- Ei, Doutor! A gente vinha aqui mais cedo para pegar mangas. Será que o senhor ainda sabe subir num pé de manga?

O médico aceitou o desafio, e foram todos para as mangueiras. Demonstrando agilidade, o médico aventurava-se nos galhos mais altos, escolhendo as melhores mangas, que jogava lá do alto para Zé Leite, que as recolhia e empilhava num canto. Gastaram algum tempo naquela atividade, e depois foram à plantação de cactos-palma, recolher alguns frutos que estavam maduros.

Mais de duas horas depois, quando retornaram, o médico examinou novamente a mãe de Dedé e, vendo que já estava tudo bem, resolveu ir embora.

- Vá tranqüilo, Doutor- Disse Dona Quitéria. – Leve Rosinha, eu ficarei aqui até amanhã. Se precisar de alguma coisa, mando Dedé Chamar.

Um mês depois, Dedé e família mudavam-se para a cidade. O pai, com saúde precária, não estava mais dando conta de cuidar dos roçados, e arrumou um emprego na empreiteira que estava pavimentando a estrada que liga Recife ao interior. Iria trabalhar num almoxarifado, e precisaria permanecer a semana toda longe de casa. Morando na cidade, a família teria mais facilidade caso precisasse de auxílio. Zé Leite e Naldinho sempre arrumavam uma desculpa para passarem por lá e fazerem uma visita à pequena Maria dos Anjos. Durante essas visitas, costumavam pegá-la no colo por longos minutos. Isso era um segredo dos dois que não podia ser espalhado. Naquela época, pegar bebezinhos no colo era coisa apenas de meninas, e eles tinham o maior medo que isso se espalhasse e eles virassem alvo de gozações.

Como todo segredo, as outras crianças logo ficaram sabendo das visitas, mas felizmente outra história se espalhou mais rapidamente. Dona Quitéria, depois de inteirar-se de todos os acontecimentos, considerou aquele parto um milagre, só possível pela ajuda que os meninos deram ao médico, e dizia a todos que eles tinham ajudado a salvar a vida de Dona Mariana e da pequena Maria dos Anjos. Isso fez com que as outras crianças admirassem o feito deles, e achassem justo que eles visitassem o bebê que tinham salvo…