Miguel e os telhados

Retirou a telha, e, caso estivéssemos do lado de dentro e olhássemos para o alto, poderíamos finalmente divisar o rosto do responsável pelo ruído furtivo do barro arranhando o barro.

Mas tal rumor Miguel procurava fazê-lo o mais baixo que podia, para que não se o ouvisse nem mesmo na calmaria da tarde, hora preferida em sua prática de devassar intimidades das famílias da rua Solón Pinheiro em seus tempos antigos, o das casinhas sem forro.

O pai e a mãe da casa vinte e três discutiam a respeito de um dinheiro que estava para sair. Assunto que a Miguel não interessava nem um pouco. Assim,virava-se e ficava deitado, de papo para o ar, para o céu multicolor, e pensava na vida, em sua vida de criança que já deixa de sê-lo, ganhando buço e pêlos na virilha e aspirações novas. Como a tortura celibatária que lhe faz a filha da casa vinte e dois, contígua a essa sobre a qual agora repousa.

Sem nada de mais ali ocorrer, repõe no lugar o pedaço de telhado. Vem-lhe então a memória do dia em que foi recolocar em seu nicho uma telha da casa dezenove, onde vive a Professora, e ela, a telha, resvalou pelo vão e caiu ao pé de Dona Marta, partindo-se em milhares de pedacinhos. Com o estrondo, a responsável pelos alunos de Matemática da quinta série soltou um grito agudo de histérica que era, e o garoto procurou apressadamente descer, ao que acabou por cair, como a telha, no quintal do vizinho, Seu Demétrio, caboclo que logo acorreu com a espingarda a fim de dar cabo no safado que lhe destruía o telhado e agora vinha fazer o mesmo com os arbustos.

Não voltou para casa com um braço ou uma perna quebrada, mas as orelhas vermelhas, estas não pôde evitar. Dona Marta, Seu Demétrio e Seu Antônio, alfaiate, sobre o qual Miguel certa vez atirou dois ratos vivos, trataram de acertar punição junto aos pais do menino.

Passou, assim, longo tempo sem explorar as cobertas das casas geminadas que às seis da tarde expeliam gente e cadeiras na calçada e se estabelecia conversação até o momento de se ir deitar. Foi justamente devido à chegada dos vizinhos da casa vinte e dois que Miguel voltou a trepar nos telhados e observar, qual Deus, a vida alheia do alto.

A princípio, pareciam integrar a família um senhor, uma senhora e um velho que se poderia considerar o pai viúvo de algum dos dois ou um velho tio solitário – estes vira Miguel no dia em que ali instalaram. Mas, numa manhã perdida nos anos, descobriu-lhes uma filha.

No frescor da mocidade, não teria mais que dezesseis anos saudáveis e roliços. Era cálida, especialmente entre o pescoço e os ombros. Voltando com o pão enrolado apenas no meio por uma tira de papelão fino, Miguel pôde observá-la, desde a esquina, passando por sua porta, ao que por pouco não desfaleceu ante tanta ternura, e cruzar a rua até seu número: vinte e dois.

Então ela chegara com os novos moradores. Bom, bom. Imediatamente, o menino começou a fantasiar. Não como fantasia com Dona Marta, que, embora madura, permanece em estado de se desejar e alimenta sonhos. Nem como o faz com Cecília, em que o que o atrai é meramente a curiosidade acerca do mundo feminino, da vida e dos segredos de uma garota a bem dizer da sua idade. Com essa que acabava de chegar, porém, tudo era diferente. Era verdadeiramente bela, linda em seu aspecto caseiro.

Miguel por meses não subira uma única vez no telhado de casa nenhuma, nem mesmo a sua. Com o incidente no quintal da casa vinte, todos em casa descobriram onde ele estava quando se perguntavam, intrigados, no vértice da tarde: “onde está Miguelzinho?”. Todos, então, já deveriam ter esquecido de seu costume, pensava. E, olhando, por cima do muro, as roupas da nova vizinha no varal, tomou por fim uma resolução.

Olhou à sua volta e, concluindo não haver perigo, passou, com dois movimentos rápidos, primeiro para o muro e, em seguida, para o telhado de sua casa. Como era bom estar novamente no alto, acima de todas as fraquezas humanas e, para ver as pessoas, ter que olhar para baixo. De gatinhas, passou para o telhado do vizinho e, como para praticar, retirou uma telha e espiou. Assistiam à televisão na casa dos Ferreira. Dona Marlene exibia um decote que fez com que Miguel dispensasse as últimas dúvidas que poderia ter a respeito de sua aventura.

Devolveu a peça ao lugar de onde a havia tirado e, sem mais demora, tratou de se lançar ao telhado da casa vinte e dois. Sem mapa de qualquer espécie, sabia precisamente onde se localizava os quartos de casal e solteiro. Primeiro, por serem as casas todas iguais, e, em segundo, pela vida da gente simples ter como guia a ação e as vivências, ao contrário da dos letrados, inutilmente teórica. E, como um gato, passou à parte que cobria um dos dois quartos que poderia ter escolhido a vizinha. Errou, porém. No primeiro quarto, havia se instalado o tio ou avô, que lia um jornal. Tratando de tapar a abertura e de passar para o outro quarto, pensou que esse senhor poderia ter sido uma boa vítima de suas traquinagens.

Postado bem sobre o aposento, ajoelhou-se e deixou cair os ombros por um instante. Respirou fundo e, após selecionar minuciosamente uma telha, começou a erguê-la com um cuidado que fez com que ela parecesse pesar toneladas. Depô-la a seu lado e lançou o olhar para dentro.

Então ela surgiu. Deitada na cama, suscitava desejos em Miguel. “Maravilhosa”, pensou, ao correr as mãos para dentro do calção. Sorria e se deleitava ao vê-la erguer-se e trocar de roupa. Olhava-a examinar o corpo desnudo de moça antes de cobri-lo novamente.

Com uma expressão própria dos hipnotizados, passou a observá-la todos os dias, até este em que agora estamos. Miguel perdera o interesse em examinar outras vidas que não a dela e, se há pouco metia os olhos na abertura do telhado da casa vinte e três é porque a vizinha saíra. E, deitado de costas no telhado, havia esquecido do passar do tempo.

Até que emerge de sua sonolência e a vê aparecer na rua, com o pai, Seu Costa – o máximo que pôde descobrir até agora acerca da referida família: que se chamam Costa. Rapidamente, levanta-se e, como mais um de seus saltos felinos, galga o vigésimo segundo telhado. Com ímpeto, arranca uma telha do quarto da filha e se põe a aguardá-la – passará inevitavelmente primeiro pela sala. Eis que, ao cabo de alguns segundos, ela adentra seu cantinho e, com a delicadeza que possui a não mais poder, senta-se na cama, que ficava precisamente abaixo da telha retirada por Miguel, e este a admira, metros acima. Alucinado que está, não percebe que a vizinha saca de um espelhinho quadrado e passa a se examinar diante dele. E vê mais do que sua própria face, vê uma abertura em seu telhado e, além dela, um menino em devaneios. A princípio, estremece com o susto, mas se contém, esboça um sorrisinho e, com vagar, depõe o espelho a seu lado e, com a ponta de dois dedos, deixa cair uma das alças do vestido de casa. Cruza as pernas como se tivesse toda a vida para fazê-lo e, de olhos fechados, ergue o pescoço e os braços e com eles brinca com os cabelos, que vão para lá, para cá, num ir e vir ardorosamente singelo. Com leves olhadelas no espelho, vê que o garoto parece responder com expressões sempre mais desconcertadas. Sorri para si, mas é como se fosse para aquela criancinha sedenta por se tornar homem.

Dá-lhe alguns minutos mais de profunda descoberta, apruma-se, escova os cabelos e volta para a sala. Miguel vira-se novamente de costas, esquecendo a telha fora de lugar e as calças por abotoar e ali sonha até a noite. Em casa, perguntam por ele com dificuldade para crer que esteja novamente por sobre os telhados. Ele, Miguel menino, Miguel voyeur.

Igor Miná
Enviado por Igor Miná em 06/11/2006
Reeditado em 06/11/2006
Código do texto: T283337